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Sessenta e nove

A vida estava mesmo muito tranquila para ser verdade. Sempre desconfiei da calmaria, ela era apenas uma armadilha cruel, esperava você se desarmar para prendê-lo em suas garras.

Alguns dias se passaram após a entrega dos resultados do exame de compatibilidade e todos estávamos muito satisfeitos. Woohyun inclusive mencionara que sua mãe pretendia agradecer a Myungsoo, e isso era algo grande, já que ela ainda o odiava profundamente. Apesar de sentir certo ciúme – depois de tudo, Myungsoo ainda era o ex de Woohyun – concordava com a necessidade daquele perdão. Tudo parecia melhorar pelo simples fato daquela senhora se abrir mais às pessoas ao seu redor.

O que me incomodava mesmo, era o fato de nada acontecer enquanto tudo acontecia. Não havia alarde, nem preocupações maiores. Apenas Woohyun finalizando as primeiras sessões de quimioterapia e Myungsoo tomando seus remédios, preparando-se para a doação de sangue da qual as células tronco seriam drenadas.

Como sempre, após a aula numa sexta feira, me dirigi à casa de Woohyun com Hyunhee e os outros, a fim de repassar a matéria. O frio começava a apertar, anunciando a chegada do inverno, e o céu parecia pronto para nevar a qualquer instante. Caminhava abraçado a Hyunhee, tentando protegê-la do vento, quando avisto Sungyeol na esquina próxima à casa de Woohyun. Sungjong se deteve por um segundo, estava nervoso pois me contara sobre a briga tremenda que protagonizara dias antes. Segundo ele, Sungyeol o chantageara de todas as formas possíveis para conseguir informações a respeito dos procedimentos clínicos. Por sua resiliência e respeito a nós, não contou nada, o que resultou em um olho roxo, acusações falsas e um castigo. Como os pais o castigaram por ter apanhado do irmão mais velho, é que não entendo.

“Hyung, ele me viu. Tô com medo.” Sungjong segurou meu braço. Podia senti-lo tremer sobre meu casaco.

“Não se preocupe, Sungjongie, não vamos deixar que ele faça nada contigo.” Dongwoo disse, aproximando-se dele e formando uma barreira.

“Isso mesmo, não vamos deixar ele tocar em você.” Hoya concordou, colocando-se em frente a Sungjong. Não diminuímos a velocidade dos passos, no entanto.

“Eu não tenho medo que ele me bata de novo. Não vou deixar ele sair ileso dessa vez. Não quero que faça mal a vocês. Se ele descobre que Sunggyu hyung tem algo a mais com o Namu hyung, as coisas podem piorar. E muito.”

“Por que acha que ele desconfiaria, Sungjong?” Perguntei intrigado, meus olhos não podiam se desgrudar da silhueta ainda distante de nós.

“Myungsoo hyung está fazendo algo muito nobre. Ele não suporta o ciúme que tá sentindo. E meu irmão não é o tipo de pessoa que sofre sozinho. Ele vai querer derrubar todo mundo com ele.”

“Como pode uma pessoa ser assim?” Hyunhee suspirou inconformada.

“Sinceramente, não sei. Temos o mesmo sangue, mas não parecemos ter saído da mesma família.”

“Não se preocupe, Jongie. Nada vai me separar do Namu. Se nem essa doença conseguiu, não vai ser esse cara.”

O encarei mais uma vez. Sungyeol era apenas uma sobra escorada em um muro. Ao avançarmos pelas calçadas, notei que ele não sairia dali tão cedo e acalmei meu coração. Por mais que parecesse estranho vê-lo sempre me observando em algum lugar, não deixaria que aquele contratempo estragasse meu dia. Estaria, afinal, reunido com todas as pessoas com quem me importo em poucos minutos, ele não poderia estragar isso, mesmo que quisesse muito.

Mas, bem lá no fundo, algo me dizia que aquilo não acabaria bem.

Ao chegarmos à casa de Woohyun, sua mãe prontamente abriu o portão e disse que ele estava na sala de jantar, no esperando para o almoço. A cumprimentamos e subimos os pequenos degraus de acesso à casa, sentindo o cheiro de samgyetang que inundava a casa. Woohyun estava à mesa, um sorriso enorme em seu rosto ao nos ver retirar nossos sapatos e deixá-los junto à porta.

“Finalmente! Estava morrendo de fome!” Ele riu, antecipando nossa aproximação.

“Acha que demoramos porque queríamos? Tava doido pra comer a comida da sua mãe!” Dongwoo riu ao chocar sua mão contra a dele.

“É, não dá pra mentir, a sopa da sua mãe é a melhor!” Hyunhee beijou o rosto dele e se sentou ao meu lado.

Eu apenas o olhei, sem evitar sorrir com nossa troca de olhares. Me sentei ao seu lado e senti sua mão sobre minha coxa. Ele a retirou rapidamente assim que sua mãe se uniu a nós.

“Meninos, infelizmente não vou poder almoçar com vocês… preciso resolver uns problemas pro Boohyun.” Ela beijou o topo da cabeça de Woohyun e saiu pelo corredor.

Fez-se um silêncio assim que ela se distanciou. Talvez em respeito a Hyunhee, talvez porque aquele assunto ainda era delicado demais. Woohyun se sentia culpado de alguma maneira, afinal, foi por causa dele que os dois se conheceram.

“O hyung volta na segunda.” Woohyun falou tão baixo que mal podíamos ouvir.

“Ele resolveu aquele problema?” Perguntei intrigado, segurando a mão de Hyunhee por reflexo.

“Sim. Eles usaram um teste de farmácia. Ele fez questão que a mãe dela acompanhasse. Nessas horas é bom que ela seja mestiça, os americanos parecem lidar melhor com essa questão de gravidez fora do casamento.”

“Que bom.” Sussurrei, vendo os outros servirem-se. “E como ele se sente?”

“Podemos, por favor, não falar disso agora?” Hyunhee disse num tom agudo, parecia irritada.

“Desculpa, Hyun.” Woohyun disse pesaroso, colocando sua porção de arroz a sua frente.

O silêncio se extendeu por alguns minutos até que Dongwoo tirasse uma piada idiota da manga e fizesse todos rir. O clima ainda parecia pesado, talvez não só pelo fato de que Boohyun hyung tinha algo a tratar com Hyunhee, mas todo o estresse com a aparição de Sungyeol nos deixava pesados. Os assuntos variaram pouco durante o almoço. O início do último bimestre escolar, as ambições para a universidade, o fato de que Hoya e Sungjong ainda tinham um ano pela frente. Tudo parecia se normalizar com o tempo e podíamos respirar tranquilamente outra vez.

Ao terminarmos, os mais novos continuaram na cozinha para deixar tudo arrumado e fomos ao quarto de Woohyun para começarmos a estudar. Apesar da aparência frágil, ele já andava com mais normalidade. As células cancerígenas em seu sangue perdiam força, ele só precisava de uma medula que produzisse sangue saudável outra vez.

Repassamos a lição e não demorou até que fossemos seis vultos jogados pelo carpete do quarto, observando as estrelas foscas coladas no teto. Por mais que tivéssemos certeza de que sua mãe não chegaria tão cedo, havia uma aura de respeito onde Dongwoo não se atrevia a abraçar Howon. Eu, no entanto, não resistia acariciar os cabelos curtos de Woohyun.

“Como se sente?” Perguntei baixo, virando-me para ele.

“Bem melhor. A última químio pareceu ser a menos dolorosa. Acho que me acostumei.”

“Logo isso tudo vai passar… consegue imaginar como as coisas serão quando se recuperar cem por cento?” Dongwoo remexeu-se, abraçando uma almofada.

“Bom, se tudo der certo, vou continuar com esse cabelo… quero passar pelo exército antes da faculdade.” Woohyun deu de ombros, passando a mão pelos fios curtos.

“Não queria me lembrar desse detalhe!” Resmunguei, pensando na fadiga que seriam os anos que estavam por vir.

“Eu vou esperar o Howon.” Dongwoo sorriu ao dizer, acariciando o rosto de Hoya pela primeira vez. “Não posso fazer isso sem ele.”

“Desculpa, meninos, mas me sinto mal em saber que sou a única que não vai ter que passar por isso.” Hyunhee disse entediada, mexendo no celular.

“Sorte a sua! Não quero nem imaginar como vai ser ficar longe de tudo.” Sungjong reclamou afetado.

“Não é uma má ideia irmos juntos…” Ponderei, vendo Woohyun se remexer ao meu lado.

“Mas vocês sabem que não podemos ficar de namorico por lá, não é mesmo? O exército é extremamente hobofóbico. A menos que fiquemos em divisões diferentes… Sei como vocês dois são!” Woohyun os repreendeu, sorrindo como se estivesse coberto de razão.

“Aish, podemos mudar de assunto?” Hoya reclamou, jogando uma almofada em nossa direção. “Ainda tenho um ano de aulas. Ainda não sei se meus pais vão querer que eu faça faculdade nos Estados Unidos. Ainda tem muita coisa pra acontecer!”

“Você tem razão. Parece que falta pouco, mas ainda tem muita coisa pra acontecer.” Hyunhee parecia decepcionada.

“Sem contar que, olha só!” Disse, endireitando-me e encostando-me na cama. “Essa é a primeira vez em que estamos todos juntos em um bom tempo. Não é pra se comemorar?”

“Mas é claro que é, podíamos jogar alguma coisa.” Woohyun se levantou e abriu o armário, retirando um jogo de tabuleiro de lá. “Video game não dá pra jogar todos juntos, então vamos de War.”

Nos acomodamos melhor e arrumamos o tabuleiro, logo nos engajando no jogo. Passamos a tarde assim, sem notar as horas caminharem afoitas. Era tão confortável que nos sentíamos em nossa própria casa. Passar o tempo assim, com Woohyun por perto, tendo o privilégio de vê-lo sorrir e estar acompanhado dos outros era, de fato, uma dádiva.

Ficamos assim até que os pais de Woohyun chegassem e nos oferecessem o jantar. Dongwoo e Hoya agradeceram e disseram que adorariam, mas precisavam ir para casa pois tinham outras coisas para fazer. Deixariam Hyunhee em sua casa no caminho, o que me tranquilizava um pouco. Sungjong ofereceu ajuda a ela e os dois foram para a cozinha. Enquanto os via sair, comecei a juntar as peças do tabuleiro.

“Vai mesmo ficar pra jantar?” Ele perguntou divertido, sentando-se na cama.

“Acha que perco a oportunidade de ficar um pouco mais contigo?” Fechei a caixa do jogo e a guardei onde ele havia tirado, mais cedo.

“Sei que não.” Ele apontou para a porta e eu a tranquei prontamente. “Vem aqui…”

Woohyun estendeu seus braços em minha direção e corri para abraçá-lo. Levantei-o, sentindo seu corpo colar-se ao meu. Era a melhor sensação que poderia provar. Como estar em casa. Ele era meu lar, o lugar onde eu pertencia.

“Te amo tanto.” Ele sussurrou em meu ouvido, deslizando as mãos suavemente por minhas costas.

“Também te amo demais.” Beijei seu rosto, apoiando o queixo em seu ombro. “Sou muito grato por poder passar por isso tudo contigo.”

“Sem você, o que seria de mim?” Perguntei manhoso e estreitei o abraço. “Só mais um garoto normal que se acha muito importante.”

“E você é.”

“Ainda tem medo?”

“Com você comigo, Kim Sunggyu, não existe lugar para o medo.”

axeau

Após o jantar, Sungjong e eu lavamos a louça e nos despedimos da família Nam. Estava tão feliz e animado por poder passar esse tempo precioso ao lado de Woohyun, que acabara por me esquecer do encontro de mais cedo. Sungjong também não parecia incomodado, apenas passava creme hidratante nas mãos e reclamava sobre como o detergente as deixava ressecadas. Ao atravessarmos a rua, enquanto eu lhe dizia que não tinha com o que se preocupar, pois suas mãos já eram mais macias que as de Hyunhee, o ouvi gritar assustado, detendo-se repentinamente.

Sungyeol bloqueou sua passagem e eu me perguntava, perplexo, de onde teria saído. Empurrou o irmão e me encarou, seus olhos flamejando de ódio.

“Vocês são realmente muito amigos, não é mesmo?” Disse entre dentes, impondo-se diante de mim.

“Tem algum problema com isso?” Disse despreocupado. Ou ao menos era isso que queria que ele pensasse.

“Você se acha mesmo muito esperto, não é mesmo, Kim Sunggyu?” Ele riu ironicamente e Sungjong o empurrou.

“Hyung, você não tem nada a ver com ele, nos deixe em paz.”

“Eu tenho tudo a ver com pessoas que se metem no meu caminho.” Sungyeol empurrou Sungjong de volta e voltou-se para mim. “Qual a sua intenção? Fazer com que Myungsoo se reaproxime daquele idiota?”

“Você não tem o direito de chamar Woohyun de idiota. Olha só você, agindo como um louco, se metendo onde não é chamado.” O empurrei de volta. Apesar de maior, ele não me metia medo. “Se tem algo que eu não quero, é reaproximar os dois.”

“Entendo. Então você deve saber que Myungsoo não está disponível.” Ele riu sarcástico, colocando a mão nos bolsos da jaqueta.

“Não estou interessado na disponibilidade dele.” Sungjong me observava confuso, talvez tentando encontrar alguma saída para aquele encontro.

“Que bom. Assim você não se mete no nosso caminho.” Sungyeol se aproximou. Tão perto que podia sentir sua respiração tocar meu rosto. “Vou fazer o possível pra que sua cara não seja uma lembrança. Assim como já apaguei a de Woohyun”.

Me permiti encará-lo por um tempo. Me perguntava como alguém poderia odiar tanto uma pessoa como Sungyeol parecia odiar Woohyun. Eu mesmo tinha meus problemas quando o assunto era a falta de empatia para com aqueles dois, mas odiar era algo muito forte. Ao menos era o que parecia para mim. Não conseguia compreender o que se passava entre eles. Woohyun, mesmo quando era uma grande incognita, nunca se mostrou uma pessoa odiosa.

O que quer que tenha acontecido entre eles, fora forte o suficiente para fazer com que Sungyeol prejudicasse não apenas a vida familiar de Woohyun. Ele parecia querer fazer mais mal ainda. Eu não poderia permitir que ele atrapalhasse nossos planos. Seja lá qual fosse seu motivo.

“Por que você o odeia tanto?”

“Por que você gosta tanto dele a ponto de querer se meter comigo?” Ele perguntou, taxativo. Sungjong estava pálido e apreensivo. Não conseguia se mover.

“Eu só queria entender, Sungyeol. O que Woohyun fez de tão errado pra merecer tamanho ódio?”

“Isso é algo que não te interessa.” Ele deu o primeiro empurrão, me fazendo desequilibrar para trás. “Você deveria se preocupar apenas em seguir sua vida calmamente, antes que algo ainda pior aconteça.”

“Isso é uma ameaça?” O empurrei de volta. Não demonstraria medo, não sentia medo.

“Entenda como você quiser. Sei mais sobre vocês do que imagina. Não vai querer ser expulso daquela família, vai?”

“Você não vai se safar dessa, Lee Sungyeol. Woohyun precisa dessa doação e você não vai impedir que ela aconteça. Woohyun não quer nada do Myungsoo além de um pouco de sangue. Eles não vão voltar a ser o que eram, você não tem com o que se preocupar.” Podenrei, tentando não demonstrar o nervosismo que tentava me controlar.

“E quem me garante isso? O novo namoradinho?” Ele riu. Podia ver sarcasmo e despreso naquele sorriso.

“Eu não vou mais perder meu tempo contigo. Pense o que quiser.” O encarei. Deixei que visse que eu não estava com medo ou brincando.

A força que eu precisava não era só mental. Necessitava de força física. E ela se mostrou ainda mais presente ao dar as costas para Sungyeol e puxar seu irmão, que estava petrificado pelo medo, para continuar a caminhada até minha casa.

Sungyeol poderia me ameaçar quantas vezes quisesse, poderia tripudiar como fosse, eu não cederia. Não deixaria que algo tão insignificante se interpusesse entre Woohyun e sua saúde. Só uma coisa era mais importante que ele, e eu defenderia essa doação com unhas e dentes.

Era meu objetivo, e eu iria alcançá-lo.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD