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Setenta e Cinco

 

Ainda me sentia confuso sobre os acontecimentos das últimas horas. Onde estava com a cabeça? Meu corpo todo doía, e não era pelos hematomas, sentia como se toda a energia de meu corpo tivesse sido sugada . Algo muito maior que apenas o estado de perplexidade em que me encontrava minutos atrás.

Sungyeol amava Woohyun!

Não que eu de fato acreditasse que aquilo fosse amor. Querer prejudicar alguém não é um aspecto do amor e jamais o aceitarei como se fosse. Quando se ama, se quer proteger a pessoa amada. Ele apenas contribuiu para a infelicidade de Woohyun e, no processo, foi infeliz e causou mal aos outros.

Porém, agora podia compreender tudo. Era como se o sol se abrisse em meio a um dia escuro de tempestade e mostrasse o caminho. Uma luz no fim do tunel. Agora que finalmente sabia sobre toda a história, as coisas poderiam ser diferentes.

Não que adiantasse de muito. Myungsoo estava provavelmente se preparando para ir a Gwangju com Sungjong, e eu nem ao menos tive a oportunidade de pedir desculpas ao meu querido amigo. Talvez o exército fizesse bem a Sungyeol. Ás vezes na vida só precisamos mudar de perspectiva. Agora que a poeira abaixou, só quero que todos fiquem bem, e que um dia Woohyun possa perdoar a todos eles e seguir em frente. Quero fazer o mesmo.

Saí do banho e me fechei em meu quarto. Ainda era difícil organizar as coisas em minha mente, precisava de um tempo a sós para pensar. Naquele momento Woohyun estaria se recuperando do longo transplante e levaria algum tempo para que pudessemos entrar em contato. Devido às chances de uma infecção enquanto ele se acostuma à nova medula, as visitas serão mais difíceis e terei de aprender a esperar. Como se os quase dois anos de espera por ele não tivessem sido o bastante.

Deitei-me e fitei a janela. A madrugada começava a se levantar lá fora, o vento leve do início da primavera movimentando a árvore no quintal. Quanto tempo mais até que tudo se resolvesse?

Alguém bateu em minha porta e logo minha mãe apareceu, apenas seu rosto preocupado me olhando. Assenti e ela entrou, fechando a porta com cuidado, como se aquela não fosse sua própria casa.

“O pai, onde tá?”

“Já dormiu. Acho que ele ainda não entendeu muito bem o que aconteceu. Ficou nervoso por ter que conversar com os policiais.” Ela se aproximou de mim e sentou-se em minha cama. Colocou minha cabeça sobre seu colo e afagou meus cabelos. Tentou tocar o hematoma em meu queixo, mas ao ver  minha expressão de dor, desistiu. “O que aconteceu, Sunggyu-yah?”

“Ainda estou tentando entender, mãe.”

Fez-se silêncio em meu quarto e ela assentiu. Meus olhos encontraram os dela e nunca havia visto o que refletia naquelas íris até então. Não era preocupação em si, havia algo mais. Algo que eu jamais compreenderia. Como alguém pode entender o que se passa no coração de uma mãe.

Aquele mesmo olhar era o que me guiara até então. Eu podia ver compreensão sufocar irritação e preocupação. Não podia deixar de confiar nela. Minha mãe sempre fizera o melhor por mim e por meus amigos. Ela merecia uma resposta. Mas eu estava pronto para dizer algo? Sinceramente, não sabia.

“É uma longa história…” Hesitei e ela sorriu.

“Quanto mais longa, melhor, meu amor. Conte tudo, por favor.”

“Como eu poderia contar algo sem te decepcionar, mãe?” Perguntei ansioso e ela sorriu ainda mais.

“Você abriu o olho de um garoto com um soco, Sunggyu. Você, um preguiçoso total. O que poderia ser mais decepcionante? Não sei dizer.” Ela olhou a janela – à meia luz do abajur a noite lá fora parecia tranquila. “Se bem que… isso não foi de todo decepcionante. Fiquei surpresa, isso sim.”

Fiquei em silêncio por um segundo. Aquele momento era o mais inesperado de toda a minha vida. E, se considerar momentos inesperados, posso colocar aí meu primeiro beijo com Woohyun. O rosto de minha mãe pedia explicações. Eu sentia medo.

Medo por sua reação. Medo por tudo o que já acontecera com Woohyun quando seus pais descobriram seu namoro com Myungsoo. Medo de perder tudo o que já conquistara. Medo de perder o amor de minha mãe.

Mas ela não era qualquer mulher. Era minha amada mãe. Aquela que me protegia e que me preparava para a vida. Embora a dúvida e o medo me atingissem, eu via naquele olhar materno o lugar seguro no qual sempre poderia voltar. A promessa de que, acontecesse o que acontecesse, ela ainda me amaria.

Isso tudo não diminuía meu medo, no entanto.

“Diga, Sunggyu. Por que bateu naqueles garotos.”

“Nam Woohyun…”

Ela ergueu as sobrancelhas à menção de meu amante. Momentos depois, as franziu em hesitação. Talvez estivesse tentando fazer a ligação entre aqueles garotos e o amigo bonito que estava internado no hospital, recuperando-se da transfusão. Antes que ela pudesse dizer algo, adiantei-me para explicar.

“Eles atrapalharam a doação de medula. Isso me deixou muito irritado porque Myungsoo, o garoto que iria doar, sumiu no dia de fazer a doação. Eu não sabia o que ele fazia aqui e isso me enfureceu, antes de ele se explicar, eu bati nele com toda a força que tinha.”

“Você se sentiu melhor depois disso? Sungjong parecia tão assustado que tive pena.”

Nesse momento, uma lágrima escorreu de meus olhos. Ao contar o ocorrido, as coisas pareciam fazer sentido. Não conseguia não me arrepender da forma como tratei meu querido amigo.

“Na hora sim. Depois não. Me sinto horrível.”

“Por quê?”

“Fiz tudo errado, mãe. Tudo errado…”

Ela acariciou meus cabelos e beijou minha testa. Parecia querer me incentivar com aquele gesto. Eu estava disposto a abrir meu coração.

“Filho, sabe que eu vou estar aqui, não é? Independentemente do que aconteça, você é meu filho precioso e eu não seria capaz de fazer com você o mesmo que aquela senhora fez com o filho dela. Por favor, me conte tudo.” Ela sorriu e eu fechei meus olhos, talvez assim, sem ver seu rosto, seria mais fácil.

“Eles deixaram Woohyun na mão. Eu pensei… por diversas razões… mãe…” Respirei fundo. Não imaginei que seria tão difícil explicar tudo aquilo. “Por motivos que não sei dizer, pensei que eles queriam prejudicar o Woohyun. Mãe, ele é tão importante pra mim que, se acontecesse algo pela falta de medula, eu não sei do que seria capaz.”

“Eu sei, filho. Mas você conseguiu doar. Isso deveria deixá-lo feliz.”

“Sim. Fiquei muito feliz por doar. Mas eu não sabia que ele não foi porque o irmão e a mãe do Sungjong sofreram um acidente.”

“Acidente? Meu Deus! Está tudo bem? Isso é sério!” Ela se sobressaltou e eu abri meus olhos. Ela parecia tão preocupada, como se fosse ela a sofrer um acidente.

“O irmão dele precisou amputar as pernas. Isso é muito triste, ele é apenas uma criança.” Ela assentiu e parecia estar prestes a chorar. “Myungsoo acompanhou Sungyeol e Sungjong até Gwangju para dar algum suporte. Ajudá-los nesse momento tão difícil. Por isso Sungjong desapareceu… Mas ele não me contou nada, eu não sabia.”

“Esse Myungsoo parece um bom garoto. Ajudar os amigos assim… só alguém com bom coração faria isso, mesmo sabendo do compromisso.”

“É…” Como explicar que Myungsoo fora com eles porque era namorado de Sungyeol?  Cada explicação parecia ficar ainda mais difícil. “Mãe…” Sentia-me travado. Não conseguia dizer.

“Sim, meu amor?”

“Na verdade… Ai, como é difícil!” Fechei os olhos com força e ela se endireitou, colocando o travesseiro em suas costas e me aninhando para que ficasse confortável.

“Tome seu tempo, filho.” Embora parecesse ansiosa, ela ainda esperava.

“Eu preciso contar tudo… Não posso continuar com isso entalado.”

“Vá em frente, meu amor. Quero fazer parte da sua vida.”

Seu sorriso era tão sincero que, por um momento, me senti liberto para contar. Sabia que poderia confiar nela.

“Myungsoo foi com eles porque tinha um relacionamento com Sungyeol. Não como a amizade que tenho com Dongwoo e Sungjong. Algo mais forte.” Ela abriu a boca e arregalou os olhos de forma assustada. Compreendia bem do que eu falava. Talvez não acreditasse que garotos tão bonitos poderiam se relacionar dessa forma. “Eles eram amigos de Woohyun antes, mas Sungyeol fez algo muito ruim para ele, então acreditei que, por causa desse relacionamento, ele quis prejudicar o Namu e impediu que Myungsoo fosse doar. Mas eu estava errado…

Acontece que Sungyeol também gostava do Woohyun. Sei que isso pode ser um choque pra você, mãe, mas existem garotos que se apaixonam por outros garotos. E como alguém poderia não se apaixonar por Woohyun? Ele tem essa aura ao redor dele que faz com que as pessoas se interessem. E uma vez interessada, a pessoa não consegue parar de pensar nele. No sorriso, nos olhos, no jeito que ele fala, em como ele arruma o cabelo quando está despreocupado. Até quando ele está triste, tudo ao redor dele tem um quê de diferente. Quando ele sorri, é como se um raio de sol perfurasse nuvens grossas de chuva e iluminasse o mundo. Como alguém poderia não se apaixomar por ele? Agora eu entendo. Dificilmente seria simples ignorar um sentimento desses e, quando ele escolhe alguém, é difícil não sentir ciumes. Sungyeol teve ciúme porque ele percebeu esse brilho primeiro, mas Woohyun escolheu Myungsoo.

Eu não sei, mãe, como seria ver a pessoa que amo escolher alguém que acabou de chegar. Eu seria capaz de respeitar isso, ou ficaria tão amargurado que seria capaz de separar essas pessoas? Foi isso que ele fez. Fez com que os pais de Woohyun soubessem e, como eles são muito religiosos, afastaram os dois. Woohyun foi isolado e sofreu muito por isso. Por outro lado, Sungyeol ficou com Myungsoo porque achou que assim poderia ter um pouco do que não teve com Woohyun.

É complicado, eu não consigo entender, mas eu mesmo me envolvi com a Hyunhee pensando que poderia suprimir meus sentimentos por outra pessoa. Ela sabia de tudo, por isso achei melhor não continuar. Desculpa, mãe. Você acreditou que ela seria sua nora e eu me sinto muito mal por isso…

Mas continuando, por causa disso eu pensei que Sungyeol atrapalhou a doação e fiquei muito bravo. Quando na verdade, foi ele e Myungsoo quem mais doaram sangue. Por isso bati no Myungsoo quando vi ele aqui no portão. Sungyeol tentou defendê-lo e eu acabei batendo nele também. Não sabia que eles queriam saber como Woohyun estava, queriam contar o que aconteceu pra não terem comparecido no dia da doação…. Se eu não fosse tão cabeça quente…

Eles me contaram tudo quando estávamos no hospital. Mas nem Myungsoo sabia dos sentimentos do Sungyeol. Ainda me pergunto como ele pôde ter guardado isso por tanto tempo. Deve ter tido uma vida muito difícil escondendo sentimentos. Mesmo que ele tenha feito tudo isso contra Woohyun, eu não consigo sentir rancor. Foi uma atitude mal pensada, algo feito por causa da dor da rejeição. O que eu faria se estivesse no lugar dele?”

A encarei, tentando tomar fôlego por vomitar todas aquelas palavras sem qualquer pausa. Ela ainda me observava, perplexa, talvez assustada demais para perceber tudo o que eu dissera. Ela mordiscou o lábio inferior, talvez absorvendo toda a informação, e eu me sentia ansioso demais para me controlar.

“Então…” Ela disse, respirando fundo e soltando o ar pesadamente. “Você, esse tempo todo, estava apaixonado por Woohyun?”

“Mãe?”

Ela franziu o cenho, como se tentasse com muita força compreender tudo aquilo. Eu tinha contado toda a história dos garotos e, tudo o que ela absorvera, fora aquilo? Mas eu não dissera que estava apaixonado por ele.

“Meu amor, você está apaixonado por um garoto?” Ela disse tão baixo que mal conseguia ouvir. Como se aquele segredo pudesse custar minha vida.

“Mãe?”

Por algum motivo, eu não era capaz de falar. O medo se apossou de mim como no dia em que descobri a leucemia de Woohyun. Como o medo da rejeição que senti ao não saber ao certo o que ele sentia por mim. Ela estava boquiaberta, olhando para a janela como se a noite lá fora fosse capaz de explicar tudo o que estava acontecendo.

“Meu filho… Como isso aconteceu?”

“O quê?”

“Como percebeu que gostava de um garoto? E pensar que o recebi aqui como um dos seus amigos…”

A voz dela começava a endurecer e eu, finalmente, senti o frio violento do medo. Aquele pavor de não saber ao certo o que poderia acontecer. Medo de ser separado de Woohyun como ele foi separado do mundo. Pude ver lágrimas escorrendo por seus olhos e meu coração parou, arrependido. Não tinha mais nada que pudesse dizer.

“Diga, Kim Sunggyu! Anda, diga!”

“Não sei mãe… eu não percebi. Dongwoo que leu os sinais e me disse que algo não estava certo, que eu estava assim… apaixonado?! Não sei mãe, não sei.” Ela compreendeu o medo em minha voz, pois seus olhos de repente mudaram.

“Dongwoo… claro. Como se eu não soubesse que havia algo estranho entre ele e aquele outro garoto…” A perspicácia em sua voz começava a me assustar. Agora sim o medo do isolamento me afogava.

“Com licença, meu filho. Preciso de um copo dágua.”

Ela se levantou e saiu do quarto sem olhar para trás. Bateu a porta e, embora não tivesse feito barulho, aquilo era o suficiente para fazer meu coração parar. Corri até minha escrivaninha e peguei o celular. Escrevi algo como “estamos ferrados” e mandei para Dongwoo. O pobre não entenderia nada, aposto que ainda não sabia do que aconteceu. A briga, o que houve com Sungjong, tudo aquilo. Dongwoo já sofria o suficiente com a ida de Howon para os Estados Unidos, não merecia ainda mais sofrimento.

Não conseguia pensar em mais nada. Era tanta informação que minha mente não sabia qual processar. Queria apenas deixar de existir, seria mais fácil lidar com os fatos se eu fosse reduzido a nada. O medo era tão grande que adormeci.

 

Na manhã seguinte acordei com o sol batendo em meu rosto. Havia esquecido de fechar a cortina antes de dormir. Como poderia? A palpitação da ansiedade me informou que algo estava muito errado e que eu deveria me preocupar. Sentei-me atordoado e notei que minha mãe estava sentada diante da minha cama. Seus olhos, no entanto, estavam diferentes. Parecia cansada, como se tivesse passado a noite em claro.

“Mãe…”

Ela sorriu de lábios retos e fechados e aquele gesto em nada ajudava. Ergueu uma xícara com chá de ginseng e me deu. Esperou que eu tomasse, embora eu o fizesse a contragosto. A ansiedade prendia minha garganta e era difícil engolir.

“Filho…” Ela parecia hesitante. “Não consegui dormir essa noite.” A rouquidão em sua voz me deixava ainda mais preocupado.

“Mãe…”

“Queria te pedir perdão pela minha reação essa noite. Você confiou em mim, em me contar suas coisas, e eu só surtei. Não é fácil para uma mãe perceber que seu filho é diferente dos outros.” Ela olhou para as próprias mãos e sorriu. Eu estava paralizado. “Quando vi você com Hyunhee eu meio que entendi seu comportamento nos últimos meses. Achei que de fato você estava apaixonado e eu poderia ter nela a filha que não tive. Por sorte ainda posso ter nela a filha que não tive. Eu sabia desde o início que você estava apaixonado, meu amor. Só agora entendo o porquê de não ter me contado antes. Estava ansiosa por esse momento…

E quando me lembro da primeira vez que vi aquele garoto, e de como você parecia feliz por tê-lo aqui, tudo começou a fazer sentido. Eu achava que era apenas alegria por uma visita, não podia imaginar que teria sentimentos por ele. E acho que compreendo. É mesmo difícil não sentir nada por um garoto tão bonito, simpático e de bom coração.

O que me entristece um pouco, talvez, seja o fato de não saber disso antes. Mas compreendo que seja muito difícil pra você perceber o que acontecia. E quanto ao Dongwoo, bem. Ele nunca fez muita questão de esconder, não é mesmo?

Minha única preocupação, meu filho, é em como a sociedade vai ver vocês dois. Sabe que as pessoas julgam muito os homossexuais e que sua vida pode ser difícil. Pra começar, os pais dele nunca vão aceitar você. Mas eu… eu… hum, eu aceito vocês. Aceito tudo o que trouxer felicidade pro meu precioso filho.” Ela se levantou e sentou-se ao meu lado, tomando a xícara de minha mão e limpando as lágrimas que caíam copiosas. Senti-a me abraçar e seu cheiro tão familiar me acalmou o coração.

“Mãe…”

“Não chore, Sunggyu-yah. Não há nada de errado em amar uma pessoa. Num mundo como o nosso, amar é uma atitude nobre. Seja quem for essa pessoa. Agora tudo faz sentido pra mim, agora o sofrimento do meu filho é também o meu. Não podia imaginar que fosse tão difícil pra você. Mas você tem a mim. E sei que, quando seu pai souber, ele vai compreender. Mesmo que demore um tempo.”

“Por favor, não conte ao papai.”

“Não vou. Esse dever é só seu.”

“O que vou fazer?”

“Sinceramente, Gyu-yah, não sei. Talvez só o tempo seja capaz de responder a essa pergunta. Apenas cuide bem daqueles a quem ama e espere o momento certo. Woohyun logo estará recuperado e vocês poderão pensar no que fazer.”

Ela ajeitou meus cabelos e secou minhas lágrimas. Sorria com compreensão e parecia orgulhosa. Eu não conseguia imaginar o que se passava em sua mente, mas era grato por tê-la como minha mãe. Por um momento, desejei que a mãe de Woohyun agisse da mesma forma.

Talvez ela compreendesse. Algum dia.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD