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Cinquenta e Três

Não me lembro bem em que momento daquele dia Dongwoo e os outros chegaram à casa de Hyunhee. Todos em seus uniformes, inclusive Sungjong, com o belo e polido uniforme azul da escola adventista. Eles se sentaram ao meu lado no grande estofado da sala de estar, mas eu não conseguia enxergá-los. Via vultos, como se eles fossem fantasmas e eu estivesse cercado por eles.

A mãe de Hyunhee explicou com detalhes o mesmo que havia me dito horas atrás, como se fosse uma professora paciente e disposta a tirar suas dúvidas, mas tudo o que eu conseguia ouvir eram ruídos que se aproximavam de suas vozes. Eu podia ouvir o soluço do choro, a negação, a reação que para alguém que não os conhecesse, julgaria exagerada.

Eu ainda estava preso em um mundo paralelo.

Após o chá com calmante e mais explicações sobre o que acontecerá com Woohyun em seu longo e exaustivo tratamento, Hyunhee teve a brilhante ideia de me levar para me distrair. De quê ela conseguiria me distrair?

Fomos até a padaria onde costumávamos almoçar depois dos treinos. Dongwoo pediu exatamente o que costumava pedir para todos. Quando a comida chegou à mesa, Hyunhee nos serviu e Sungjong a ajudou. Hoya os observava em silêncio, enquanto Dongwoo me fitava como se eu fosse algum estranho. Eu os via todos. Via suas expressões, suas reações a tudo o que acontecia ao nosso redor. Só não conseguia digerir o que acontecia.

Meus olhos continuavam assim, vidrados, emudecidos, desprovidos de vida.

Me esforcei para comer. Para observar meu redor. Para coexistir. Mas nada me fazia sair de meu estado lacônico. Eles talvez houvessem percebido, mas nada fizeram que me contrariasse. Tentaram falar sobre outras coisas. Sobre o que eu e Hyunhee perdemos da aula de hoje, sobre como Sungjong conseguira uma chance de ser transferido para nosso colégio. Sobre como a vida parecia normal diante do estado de Woohyun. Eram os mais diversos assuntos, até que os ânimos parecessem melhor.

Algo em mim começava a mudar. Terminei meu suco e acotovelei a mesa. Hyunhee acariciou meus fios de cabelo e Sungjong me fitou com um meio sorriso. Eles não pareciam haver saído da casa de nossa amiga. Não pareciam haver recebido uma notícia tão inesperada e trágica. Eram apenas meus amigos, sentados à mesa, conversando como se aquele fosse um dia qualquer.

Hoya teve a brilhante ideia de me levar a um lugar mais animado e que trouxesse menos lembranças. De certa forma ele tinha razão. Aquela padaria fora o primeiro lugar em que eu e Woohyun nos encontramos a sós, e era quase impossível não remeter tudo a ele.

Fomos ao boliche por opção de Hyunhee. Sungjong disse que seria bom, porque Sungyeol e Myungsoo tinham trabalho a fazer e não iriam até lá naquele dia. Hoya aproveitou para perguntar sobre a doação que seu irmão faria, e Sungjong dissera que Sungyeol já havia ido até o posto de coleta de sangue, e feito sua parte. Myungsoo também doou, mesmo que seu sangue não fosse tão relevante quanto o do namorado.

Era estranho, pois quanto mais eu tentava participar, mais afetado me sentia.

Sungjong entrelaçou seus dedos nos de Hyunhee e a levou para uma das pistas, e Hoya se pôs a observá-los. Eu olhava em sua direção, mas era como se não os visse.

Após uma partida com Hoya, ao me notar isolado em um canto do banco, Dongwoo me chamou para jogar consigo. Levantei-me, ainda relutante, escolhi uma bola vermelha e reluzente e encaixei meus dedos nos sulcos dela. Os sapatos que tinha posto ressonavam secos sobre a pista, e eu acariciei a bola. Ela ofuscava minha visão, me enfraquecia, sugava toda a minha energia.

Talvez a cor me enganasse e me deixasse perdido. Eu a via não como uma bola de boliche. A via como o pomo que eu havia colhido, que fora envenenado pela vida, que apodrecera. Suspirei, minhas íris perdidas no fulgor rubro daquela bola, e após alguns passos, a lancei na pista. Ela cambaleava sôfrega pelo chão encerado, e não sabia ao certo se seguiria uma reta ou cairia no escanteio. Quando chegou ao final, derrubou cinco pinos e desapareceu de minha vista.

O vermelho venenoso daquela bola saíra de meu campo de visão, como se me desvendasse os olhos. Sentia-os feridos, como se um punhado de areia houvesse sido jogado contra eles, e então prendi a respiração.

Eu já havia segurado por muito tempo.

Já havia suportado aquele estado incrédulo e sucinto por longas quatro horas. Já segurara em meu coração toda a dor e dúvida que me corroíam por dentro. Foi aí que, de início um suspiro, sucedendo uma tosse rouca e contida, que o choro cambaleou para fora de mim.

Numa explosão furiosa e intensa, toda a mágoa e dor escapavam de mim por meus lábios, num choro esganiçado, ruidoso, venenoso. As lágrimas que me embaçavam a vista pareciam me fazer enxergar melhor. Devolver-me a visão que há pouco pensava haver perdido.

Todos me fitavam de forma confusa enquanto meus amigos tentavam conter meu desespero, mas nada poderia me segurar. Eu sentia meus joelhos enfraquecerem-se, lançarem-me ao chão, sugarem o que me restava de força. Dongwoo tentou me levantar, em vão, e eu me agarrei ao colarinho de sua camisa. Não havia qualquer palavra que pudesse sair de minha boca além do suspiro doloroso e inflamado.

Meu melhor amigo me fitou profundamente, como se pudesse dizer que mesmo que não suportasse me ver chorar, estava ali para mim. Mas não havia ninguém ao meu redor que pudesse controlar a angústia que insistia em me sufocar.

Livrei-me dele e levantei-me às pressas, saindo daquele boliche em um rompante. Não me preocupei em olhar para trás e ver se alguém me seguiria. Não havia ninguém que pudesse me alcançar, depois de tudo.

Eu, Kim Sunggyu, o aluno mais preguiçoso do colégio. Eu, de corpo lento e desprovido de espírito esportivo, corria livre e sem conseguir conter a força que era posta em minhas pernas. Corria desesperado, afoito, sem destino. Corria como se pudesse assim fugir da dor que invadia meu peito.

Eu corria porque assim acreditava conseguir me aproximar de Woohyun.

O vento frio de início de outono jogava meus cabelos para trás, entrava ardente por minha garganta, queimava meus pulmões. Meus olhos, por sua vez, não eram capazes de ser secos pelo vento. Lacrimejavam e abandonavam o choro que me consumia como o fogo consome rapidamente tudo o que vê pela frente. Chorava e não percebia que me via longe, que ganhava velocidade, que gritava a plenos pulmões, crendo assim conseguir me livrar da dor. Corria em círculos. Perdia-me em minha própria vizinhança. Gritava, chorava, corria e desejava apenas me perder de mim mesmo. Isso eu sabia que era impossível.

As pessoas talvez me olhassem assustadas, talvez tentassem me conter. Eu empurrava violentamente qualquer que se interpusesse em meu caminho.

Quando finalmente cheguei ao meu portão, agarrei-me à fechadura e notei que não tinha minha mochila comigo. Não me lembrava tampouco que a havia deixado na casa de Hyunhee. Puxava e empurrava o portão, como se fosse forte o suficiente para traspassa-lo, meu soluço ainda mais alto que o arranhar do aço entre meus dedos. Minha mãe notou o barulho e logo despontou entre o batente da entrada de nossa casa. Me fitou confusa e logo correu em minha direção. Abriu o portão, preocupada, e tentou me perguntar o que havia acontecido.

Eu não tinha tempo para explicações. Ao menos tinha tempo para digerir o que descobrira naquele dia. Eu me sentia perdido e despedaçado como se implodissem meu ser e eu pudesse ouvir os cacos de mim caindo, um a um.

Meu choro não me permitia ouvir seus passos em minha direção, mas antes que eu alcançasse meu quarto, senti-a puxar-me pelo braço e segurar-me nos seus. Ela me fitava profusamente, mas eu não conseguia vê-la. Não conseguia suprimir a dor. Não conseguia desvencilhar-me da realidade.

“Sunggyu-ah, o que houve?” Ela perguntou de forma estridente, mas eu não conseguia verbalizar o que acontecia dentro de mim. “Pelo amor de Deus, Sunggyu, fala comigo! O que aconteceu?!”

“Mãe!”

Era a única palavra que eu conseguia dizer. Não havia razão que me fizesse responder ao que ela me perguntava. Sentia o ar falhar em sua busca por meus pulmões e o cansaço finalmente me vencia. Por quanto tempo eu havia corrido? Por quanto tempo havia me perdido naquela confusão que me intoxicava completamente? Já não saía som de minha boca. Apenas minha respiração pesada ecoava pelo corredor de minha casa. Minha mãe me segurava, usava toda a força que tinha em seus pequenos braços num intento frustrado de me manter em pé. Meus olhos queimavam, doíam, sangravam.

Então, eu desabei.

Caí por sobre meus joelhos e minha mãe se desequilibrou, caindo ao meu lado. Assustada e tão perdida quanto eu, ela chorava baixinho mesmo sem conhecer meus motivos. Eu deixava o medo, a angústia, minhas incertezas, anseios escaparem por meus olhos. Ela me pressionava contra seu peito, aconchegando-me em seu colo, ninando-me como quando eu era um bebê e despertava em meio à noite, após um pesadelo.

Lavava minha alma. Despedia-me de Woohyun como se nunca mais o fosse ver. Tentava a todo custo me lembrar de sua voz, de seu sorriso, de tudo o que havíamos vivido juntos em tão pouco tempo.

Como eu poderia me livrar de Woohyun? Era tão impossível quanto deixar de respirar.

Com muito custo minha mãe me levou até o banheiro e me pôs sob o chuveiro. Apalpou meus bolsos em busca de algo que não pudesse ser molhado e abriu a válvula, molhando-me com o uniforme e tudo. Inclusive os sapatos do boliche, que eu não havia trocado antes de sair de lá. A água morna não era capaz de me acalmar, então ela mesma se pôs debaixo do chuveiro, abraçada a mim. Não deixava de acariciar meus cabelos, de ao menos tentar me tranquilizar.

Quando meu soluço cessou ela afrouxou minha gravata e a jogou do outro lado do boxe. Descalçou-me, tirou minhas meias e abriu os primeiros botões de minha camisa. Beijava a palma de minha mão como quando eu era menor, e não desistia de estar ao meu lado por um minuto sequer.

Por que ela insistia tanto comigo? Por que não me deixava sofrer a sós, me afogar em minha própria dor? Ela se levantou quando notou meu peito deixar de vacilar, e saiu do banheiro. Logo voltou vestindo algo seco, empunhando uma toalha e meu pijama.

“Quando se sentir melhor, meu amor, saia daí. Não quero que pegue uma pneumonia.”

Ela encostou a porta e me deixou sozinho. Despi-me e deixei que a água cair sôfrega por meus ombros, levando consigo parte de minha dor. Há menos de uma semana, Woohyun estava naquele mesmo banheiro, comigo. Estava sorridente, cheio de vida. Ainda assim, havia apodrecido. Suprimi algumas lágrimas, voltando à realidade a qual minha casa me proporcionava, e desliguei o chuveiro. Coloquei a toalha sobre os ombros e vi o pijama que minha mãe escolhera.

O mesmo pijama que eu levara para ele, quando dormimos na casa de Hoya.

Sorri em desesperança e o segurei. Inspirei sobre o tecido de algodão, mas rescendia a roupa lavada, não havia ali vestígio dele. Não me importei em me secar apropriadamente, deixei que o pijama fizesse o trabalho por mim. Sentei-me no vaso e recostei-me à parede. Fitava o espelho, podia ver meu rosto avermelhado e sofrido.

Não me lembro ao certo quanto tempo permaneci ali, mas quando saí do banheiro, minha mãe estava junto à batente; os braços cruzados e o cenho franzido em preocupação. Nos olhamos por um tempo e ela me estendeu os braços. Por mais que eu fosse maior que ela, me sentia como uma criança, correndo para seus braços e a segurando firme, temeroso de que algo pudesse nos separar.

“Está melhor, meu amor?” Ela perguntou, acariciando meus fios molhados.

“Não…” Suspirei e ela me apertou mais contra si.

“O que houve, Sunggyunie?”

“Eu não sei como reagir a uma notícia.”

“É tão ruim assim, pra que você fique nesse estado, meu amor?” Ela me endireitou e me fitou. Eu temia ser transparente demais ao lhe contar o que havia acontecido.

“Mãe, como é perder alguém?”

“O que quer dizer, Gyu-ah?” Ela parecia assustada, temerosa do que estava por ouvir. “É uma dor terrível, meu amor. É algo que pode parecer passar com o tempo, mas vai sempre te ferir aqui dentro.” Ela tocou em meu peito, seus olhos pareciam esmorecer.

“Eu não quero isso, mãe… Não quero!”

“Você não vai perder ninguém, meu amor! O que houve que te deixou assim?”

Ela segurou meu rosto com ambas as mãos, impedindo-me de me desviar dela. Não havia mais como fugir.

“Se lembra do Woohyun? Aquele amigo que veio dormir aqui no final de semana?”

“Como posso me esquecer daquele garoto? É tão lindo e educado, como um anjo!” Ela sorriu, mal sabendo que tal gesto deixava-me pior.

“Ele está internado no hospital, mãe… Está com leucemia. Não é justo! Não é justo que ele esteja lá e não aqui com a gente. Por que, mãe? Por quê?”

“Eu… Eu sinto muito, Sunggyu! Sinto muito! Não imaginava que seria isso que te deixou tão preocupado. Você nunca falou sobre esse garoto, ele aparece aqui de repente e você reage assim…” Ela desviou seus olhos dos meus, confusa. Temia que desconfiasse de algo, mas ela parecia nostálgica demais para isso. “Meu amor… Eu sinto muito!”

“Mãe…” Inspirei profundamente, sentindo as narinas arderem pelo choro estrangulado. “O que vamos fazer, mãe?”

“Eu não sei, meu amor, mas podemos pensar em algo quando você estiver mais calmo.”

“Não vou me acalmar, mãe… Não vou quando alguém importante pra mim está num leito de hospital.”

Minha mãe me abraçou uma vez mais e me puxou pela mãe, levando-me para a cozinha. Sentou-me à mesa e acendeu o fogo, colocando água para ferver. Quando ela mexia daquela forma nos utensílios da cozinha, eu sabia que estava para preparar-me chá de ginseng. Ela nada dissera, apenas cantarolava uma canção que costumava entoar quando eu era menor. Fazia tudo como se fosse uma tarde comum, quando me esperava voltar para casa e preparar algum mimo para mim. Vê-la tranquila aos poucos me acalmava.

“Aqui está, meu amor. Beba. Vai te fazer bem.”

“Obrigado, mãe.” Ressonei, inspirando o vapor quente e aromático.

“Como soube do seu amigo, Gyunie?”

“A mãe de Hyunhee é médica dele. Fomos até lá e ela nos contou.” Contava de forma automática, como se meu coração se desligasse e apenas minha razão tomasse conta de mim.

“Deve ser mesmo difícil estar numa situação assim.” Ela segurou minha mão, seus olhos tentando me acalmar. “Há algo que possa ser feito?”

“Ele precisa de sangue. A ahjummah disse que ele vai passar por quimio e radioterapia. Depois começam os testes para transplante de medula. Eu não entendi muito bem… Ele precisa de muito sangue.”

“Que tipo de sangue?”

“B.”

“Meu tipo de sangue.” Ela concluiu, e eu a encarei sério. Não sabia que aquele era seu tipo sanguíneo. “Onde eu posso fazer os testes para doar, meu amor?”

“No hospital onde ele está internado. Lá fazem os testes e tudo o que é preciso.”

“Vamos até lá amanhã mesmo, meu amor! Faço os testes e doo sangue a esse menino. Faço qualquer coisa para que você e seu amigo fique bem, Sunggyu!”

“Mãe…”

Ela disse com os olhos brilhantes como joias preciosas. Suas mãos comprimiam a minha e me faziam sentir confiante. A confiança da proteção materna, que nos mantém longe de problemas, de temores, de fadigas que a vida nos impõe. Novamente eu sentia os olhos lacrimejarem, com uma força diferente.

Uma força em forma de esperança.

A esperança que, mesmo num pequeno fio, me trazia de volta à vida. Que me envolvia e me dava forças conforme minha mãe dava a volta à mesa e me segurava em seus braços. A força que eu precisava para manter minha fé, para seguir em frente. Para ajudar Woohyun e, quem sabe, salvá-lo.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD