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Cinquenta e Dois

Hyunhee segurou minha mão e eu a apertei mais que o necessário. Era como se ela não quisesse se perder de mim. Ou que eu me perdesse dela. Eu acompanhava seus passos sem muita emoção, sem saber definir se eu estava ansioso por alcançar a recepção, ou temeroso de fazê-lo. A mão pequena e outrora fria aquecia-se, suava, de tão colada à minha. Hyunhee não me permitiria escapar.

Quando nos aproximamos, eu reconheci a mulher que acompanhava o homem que não deixara de me encarar por um segundo. A mãe de Woohyun soava mais preocupada que o normal, e ele mantinha as mãos em seus ombros, tentando de alguma forma confortá-la.

Eu o fitei uma vez mais. Os mesmos traços, mais envelhecidos e másculos, mas ainda eram os traços de Woohyun. Meneei sutilmente assim que estava próximo o bastante para ouvir a conversa, e ele retribuiu o gesto, só então desviando o olhar. A mãe dele assinava alguns papéis, a recepcionista continuava a falar. Por mais que eu ouvisse tudo, não conseguia absorver nada.

Foi então que Hyunhee soltou minha mão e eu instintivamente envolvi seu ombro. Ela sorriu para a moça a nossa frente, sabendo que eu não poderia iniciar uma conversa.

“Bom dia. Nós viemos saber a respeito de um colega nosso que está internado.” Sua voz soava fraca, e a mãe de Woohyun nos encarou. Me abracei a Hyunhee, e esta tentava demonstrar que estava em um lugar desconhecido e nunca haver visto a moça da recepção.

“Claro, qual o nome do paciente?”

“Nam Woohyun.”

Assim que ela dissera o nome, a mulher nos encarou. Boohyun firmou as mãos em seus ombros, e ela respirou pesadamente. Eu sentia meus membros estremecerem, mas Hyunhee parecia ter todo o controle em suas mãos. Eu confiaria nela.

“Desculpe, mas por que procuram por meu filho?” Ela ressonou. A voz esmagada por mágoa, isso eu logo pude notar. Hyunhee virou-se para ela e se curvou. Eu imitei seu gesto, permanecendo assim por mais tempo.

“Sou Hyunhee, e este é Sunggyu, meu namorado. Somos da sala de Woohyun, ficamos sabendo que ele estava internado e precisava de sangue. Viemos ver como ele está e dizer que conseguimos alguns doadores.” Ela disse de cabeça erguida, sem ao menos gaguejar. Eu, em seu lugar, já teria falhado.

A mãe de Namu nos fitou dos pés à cabeça, e notou que minha mão repousava no quadril de Hyunhee. Ter passado as férias com ela acabara por ajudar a fazer as coisas parecerem mais naturais.

“E quem disse que meu filho precisa da ajuda de vocês?!” Ela cuspiu as palavras, e Boohyun se abaixou.

“Mãe, por favor…” Ele esfregou as mãos por seus ombros e voltou a nos fitar. “Se vocês trouxeram ajuda, nós vamos aceitar. Não estamos em condições de negar nada. Não é, mamãe?”

“Se você diz, Boohyunie.” Ela disse amargurada, voltando sua atenção para a recepcionista. Meu coração parecia haver coagulado todo o meu sangue.

“Tem uma sala de espera logo ali. Podemos conversar?” Boohyun ofereceu, e nós dois meneamos.

O espaço entre a recepção e tal sala era curto. Para mim, era como atravessar um deserto. Não só pela fadiga que o ato de andar me implicava, como pela ansiedade e nervosismo por ter Boohyun ali. Eu entendia que, se havia algum aliado na família Nam, este seria aquele ao meu lado. Ele parecia sereno, diferente da mãe que soava como se houvesse saído de uma montanha russa.

Entramos e nos sentamos em poltronas de couro bastante luxuosas para um hospital. Hyunhee apoiou seu braço em meu ombro, e Boohyun nos encarou. Meu estomago revirava-se dentro de mim.

“Então você é o Sunggyu?” Ele perguntou com voz firme. Tão ou mais grave que a de Woohyun.

“Sim, Boohyun hyung.” Tentei não fraquejar, mas ele parecia mesmo me conhecer. “Como sabe?”

“Digamos que ouvi muito a seu respeito nas férias.” Ele sorriu despreocupado, e era como se colocassem ainda mais peso sobre meus ombros. “Woohyun não conseguia parar de falar sobre você. E um tal de Dongwoo.”

“Meu melhor amigo.”

“E ela, quem é?” Ele apontou para Hyunhee, e minha melhor amiga estremeceu. Podia sentir suas mãos vacilantes descerem por minhas costas e voltarem a repousar diante de seu corpo. Eu a compreendia, Boohyun conseguia ser ainda mais atraente que Woohyun.

“Minha nam…”

“Sua amiga? Hyunhee, não é mesmo?” Ela meneou e ele deu de ombros. “Eu sei tudo sobre vocês, Woohyun me contou. Aliás, ele gosta muito dela também.”

“Vejo que eu não precisava ter me apresentado…”

“Na verdade eu gosto de ouvir as pessoas falarem sobre si com suas próprias bocas. Woohyun me contou muitas coisas ao seu respeito, mas tem algumas que eu prefiro descobrir sozinho.”

“Desculpa, oppa…” Hyunhee ressonou, menos segura que outrora, quando falava com sua mãe. “Mas qual o ponto em nos trazer aqui?”

“Hum.” Ele inspirou e apoiou os cotovelos nos joelhos. Agora sim parecia tenso. Como se tivesse sido despertado, voltado à realidade. “Nós precisamos muito de sangue tipo B. Mas isso vocês devem saber.” Assentimos e ele prosseguiu. “Precisamos de mais que apenas sangue, Sunggyu e Hyunhee.”

“E o que mais precisamos, oppa?” Ela perguntou, estalando os nós dos dedos. Agora ela parecia realmente nervosa.

“Woohyun vai precisar de muita paciência. De amizades verdadeiras. De carinho. Ele vai precisar se sentir amado e nisso eu tenho absoluta certeza que vocês poderão contribuir. Eu inclusive conversei com meus pais, e eles, mesmo que relutantes, não se importam que Woohyun receba visitas quando saia da UTI. Ele vai precisar disso.”

“Então poderemos visitá-lo?” Me exaltei e Hyunhee segurou meu braço.

“Sim. Supervisionados, claro… Mas podem visitar. Achei que sua tática de simular um namoro foi bastante boa. Minha mãe não vai desconfiar.”

“O que você sabe sobre isso?” Hyunhee perguntou encabulada.

“Eu sei o suficiente. Woohyun não para de falar desse garoto, e eu não sou bobo. Vocês entenderam, não? Prefiro não dizer mais nada, pois vocês já sabem que aqui pode aparecer qualquer pessoa a qualquer hora. Enfim, sem mais delongas… O diagnóstico sai em alguns minutos. Minha mãe está muito fragilizada com essa internação repentina do Woohyun, nós não imaginávamos que isso aconteceria. Tive que voltar de longe do nada porque não tínhamos certeza de absolutamente nada.”

“Nós também estamos surpresos…” Ressonei, e ele riu ironicamente.

“Isso não é surpresa alguma, infelizmente.” Boohyun mordiscou os lábios grossos e expirou. “Woohyun nunca foi saudável. Desde pequeno sempre teve um ou outro problema de saúde, e por mais que nós avisássemos a mamãe, ela nunca tomou conta dele. Acho que ela se arrepende por ter pensado que ele era uma menina enquanto estava grávida.”

“Sinto muito.”

“Tudo bem. A única coisa pela qual ela deve se arrepender, é de não ter cuidado dele da forma correta. Woohyun é tão esforçado, eu não entendo por que meus pais o ignoram tanto.”

“Talvez você entenda.” Respondi, e ele desviou seu olhar.

“A questão não é essa, Sunggyu. A questão é que o leite já foi derramado e agora precisamos correr atrás do prejuízo. Woohyun tem um…”

Antes que ele pudesse concluir, a mãe de Hyunhee entrou na sala, acompanhada da mãe de Woohyun. Ela segurava a senhora Nam pelo braço, tentando de alguma forma parecer menos aflita. Hyunhee apertou minha mão, como se já soubesse a que sua mãe viera. As duas mulheres se sentaram ao nosso lado, e Boohyun abraçou sua mãe. Ele parecia tranquilo, como se tudo ao seu redor estivesse sob seu controle. Mas quando a mãe de Hyunhee os fitou com olhos pesados, ele parecia se despedaçar.

Assim como eu já havia me partido ao meio.

A doutora então se levantou e nos fitou firmemente. Havia preocupação em seu olhar, mas ela tentou ao máximo não demonstrar. Hyunhee parecia incerta, como se não conseguisse fingir que a mulher em um jaleco tão branco quanto o piso daquele hospital, era sua mãe. Ela pediu que nós a seguíssemos até sua sala, e a mãe de Woohyun nos fitou com indiferença, demonstrando claramente que ela não desejava que nós a acompanhássemos.

Antes que todos adentrassem a sala, Boohyun nos deteve junto à porta. Nos fitou um pouco confuso, e a fechou. Por mais que eu me sentisse impotente ao ver que estava distante de descobrir o que acontecia com minha preciosa maçã, eu tentava compreender. Eu não fazia parte de sua família, não merecia saber daquilo junto deles. Ou talvez eu merecia saber antes mesmo que eles desconfiassem, porque meu amor por Woohyun era maior que o amor daquela mulher. Como pode alguém tratar a quem ama como ela o tratava?

Hyunhee envolveu minha cintura com seus braços e apoiou o rosto em meu peito. Eu a abracei de volta, quem sabe ela poderia ouvir meu coração e tirar suas próprias conclusões? Quando minha melhor amiga me fitou, eu tentei segurar meus instintos.

“Ainda não, Gyu… Você só precisa esperar um pouco mais, ok?”

“Eu vou conseguir, Hyun. Eu sei que vou.” Ressonei, e ela sorriu.

“Tenho muito orgulho de você, Kim Sunggyu.”

Ela afundou o rosto em meu peito, e eu sentia seus ombros estremecerem. Hyunhee escondia seus olhos dos meus, para que eu não a visse chorar. Woohyun sequer era alguém próximo a ela, embora ambos conversassem às vezes, mas ela continuava a chorar baixinho em meus braços. Que tipo de teste era aquele? Será que ela tentava ver até onde minha força resistiria? Será que ela ao menos sabia o quão difícil era para mim, segurá-la em meus braços e vê-la chorar por alguém a quem eu amava tanto, que mal podia respirar a espera de notícias?

Eu não era forte o bastante para descobrir os motivos de suas lágrimas. Ela tampouco era impetuosa o suficiente para me contar. Alguns segundos depois, e ela limpava as lágrimas na manga do uniforme. Hyunhee tinha o rosto avermelhado, e meu instinto protetor me impulsionou a beijar sua bochecha. Ela apenas sorriu, mas eu não podia ver sua expressão, já que a porta do consultório de sua mãe se abria.

Boohyun saiu de lá com as mãos no bolso, cabisbaixo. Inclinei meu rosto para ver dentro da sala, mas ele fechou a porta antes que eu pudesse notar algo. Eu só podia ouvir o choro lânguido de sua mãe. Ela balbuciava ‘meu menino’ enquanto soluçava.

A incerteza era como uma adaga que rasgava meu peito.

O irmão de Woohyun nos olhou brevemente e seguiu em direção à sala onde estávamos minutos antes. Ele nada dissera, mas sabíamos que devíamos segui-lo.

“Eu não sei se quero dizer isso… Porque eu não quero aceitar. E dizer é como se eu aceitasse. Eu…” Ele suspirou, escondendo o rosto por trás de suas mãos grandes.

“Apenas diga, oppa. Não precisa aceitar. Nós só queremos saber.”

Boohyun inspirou, cobrindo os lábios. E então ele nos fitou. Por um segundo, a tristeza em seus olhos me remetia à tristeza que eu costumava ver nos olhos de Woohyun. Meu corpo parecia estar adormecido, não respondia aos meus intentos de me mover dali. Quando a lágrima densa escorreu de seus olhos, eu sabia que não tinha direito algum de chorar. Aquela não era minha vez.

“Ok.” Ele ressonou, mais para si mesmo que para nós. “O resultado da punção foi positivo… E isso significa que meu irmão…” Ele prendeu os lábios entre os dentes, os olhos vermelhos e marejados mostravam um lado seu totalmente diferente do homem imponente que estava conosco naquela mesma sala, minutos atrás.

“O que ele tem?” Insisti, minha voz trêmula e fraca. Eu não podia esperar um segundo sequer para saber.

“Woohyun tem leucemia.”

Eu não conseguia raciocinar.

Nada concreto entrava em minha cabeça, a não ser o barulho do choro da mãe de Woohyun e minha própria consciência ecoando silenciosamente. Eu estava perdido no limbo, não sei. Nada parecia real ao meu redor, e sob meus pés, o mundo se abria e me tragava.

Onde eu estava?

Antes mesmo que Boohyun pudesse desabar, Hyunhee pediu licença a ele e me tirou dali. Não me lembro de como chegamos à sua casa, nem quanto tempo levou até que sua mãe chegasse e nos explicasse tudo. Ela falou sobre as causas da leucemia, sobre o tratamento, sobre o transplante de medula óssea. Tudo o que eu podia ouvir, era o zumbido que aquela palavra maldita provocava em meu ouvido.

Hyunhee andava de um lado para o outro, e eu a acompanhava com os olhos. A via gesticular, falar, falar, falar. Mas eu não ouvia nada. Ela não desgrudava de seu celular, meus olhos registravam cada um de seus passos. Mas eu não conseguia absorver nenhuma informação. Nada, absolutamente.

Como eu poderia pensar em algo, quando tudo ao meu redor se resumia em Woohyun em um leito de hospital, lutando contra algo que consumia seu sangue, cada uma de suas células? Como eu poderia voltar a mim, quando tudo que havia em meu ser se concentrava em apenas ele? Se em um momento eu cria ter fé, motivos para continuar, naquele instante eu havia perdido tudo. Todas as minhas esperanças.

Ainda assim, era impossível raciocinar.

A mãe de Hyunhee preparou um calmante, numa tentativa frustrada de fazer com que meus olhos deixassem de estar vidrados, perdidos. Não funcionou. Hyunhee me deitou em seu colo e disse coisas das quais não me lembro. Eu sequer conseguia chorar.

Talvez meus olhos estivessem secos. Talvez minha alma houvesse se perdido de meu corpo.

Não sabia como reagir.

Não diante dos fatos. Não quando eu sabia que minha preciosa maçã havia apodrecido.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD