Rotten Apple

Quatro

Playlist

Entre as estantes repletas de pó, eu buscava o livro que continha o tema restante, para que pudéssemos concluir nosso trabalho. Me perdia entre pensamentos e concentração, num vórtice confuso de sensações que provava pela primeira vez.

Passei a pensar sobre tudo o que conflitava com minha personalidade. Notei o quanto eu havia mudado naqueles dois meses, desde a primeira vez que vi aquele garoto. Tantas coisas que eu provava pela primeira vez… Meu comportamento era diferente, minhas prioridades eram diferentes. Antes, eu certamente não estaria na biblioteca, procurando livros. Já teria colado a primeira página encontrada no Google em um documento do Word, feito algumas alterações, e dado aquele trabalho como terminado.

Antes, eu não levaria tanto tempo pensando sobre a mesma situação, sobre a mesma pessoa. Não era também como se eu fosse frio e não me importasse com os demais. Tenho meu circulo de amizades, as pessoas em quem confio, com quem me importo. A diferença é: para ser uma dessas pessoas, elas têm de passar por alguns pré-requisitos básicos, e isso exige que eu a conheça bem. Não conheço nada a respeito de Nam Woohyun. Exceto seu provável endereço, e seu desgosto por cascas de maçã.

Sorri ao me lembrar de como me incomodava vê-lo descascá-las, imaginando que eu as comeria todas, se fossemos amigos. Cada vez que via aquele fruto, em qualquer que fosse a situação, me lembrava dele. Peguei o livro que procurava e me sentei numa das mesas da biblioteca, ao lado de Dongwoo – que pesquisava seu trabalho no computador da escola, é claro –, e o abri na página indicada. Eu não conseguia ler o que estava ali, tudo o que podia ver eram letras que davam forma às suas mãos, diligentemente descascando uma maçã.

Maçã… Maçãs. O fruto proibido. Nam Woohyun tinha uma fixação por maçãs, por descasca-las perfeitamente, sem quebrar ou danificar a casca, por fatiá-las em cubo e comê-las com a ponta da faca. Parecia um ritual, depois de vê-lo fazer isso tantas vezes. Ele não as comia todos os dias, e eu já havia decorado os em que trazia uma. Segundas e quintas; esses eram os dias em que ele comia maçãs no colégio.

Quando pensava sobre isso, imaginava-o como a própria maçã. Seria ele um fruto proibido para mim? Pensava que talvez, por meio do destino, ou de alguma piada sem graça, eu estivesse destinado a desejar um pedaço desse fruto. Não no sentido pejorativo, não entendam mal. Eu desejava saber sobre si, conhecê-lo, mas ele ainda era algo distante, difícil demais de alcançar. Woohyun estava no topo de uma macieira repleta de frutos opacos e podres. Ele permanecia lá, longe das minhas mãos, brilhante e impecável.

Suspirei, talvez alto demais, e Dongwoo se virou para mim, me encarando com sua expressão divertida. Ele me conhecia melhor que eu mesmo. Sabia que algo estava errado, que meu comportamento era diferente, e que eu deveria falar. Dongwoo sempre sabia me fazer falar o que ele queria ouvir.

“E aí, vai me contar o que está acontecendo, ou vou ter que descobrir sozinho?”

“Aish…”

“Sem aish pra mim, Sunggyu. O que é que tá pegando?”

Aproximei minha cadeira de onde ele estava, e deixei minha caneta no meio do livro. Dongwoo mantinha os olhos colados nos meus, como um grande detector de mentiras e omissões. Apoiou o braço sobre o encosto de sua cadeira e o queixo sobre o braço, mantendo aquela expressão calma, porém exigente.

“Eu vi ele ontem, quando voltava da sua casa.” Dei de ombros, tentando fugir de seus olhos.

“E…”

“E ele estava como sempre, calado. Eu passei por ele e não sabia o que fazer… Não ia ignorar o cara se estamos fazendo esse trabalho juntos. Olhei pra ele, sorri em vez de dizer olá, mas ele só olhou de volta. Um olhar estranho, vazio.” Tentei reproduzir o olhar de Woohyun, em vão. “Quando já estava longe, olhei pra trás e ele não estava mais lá. Não sei se aquela é a casa dele, se ele estava andando aleatoriamente pela rua. Aquele cara é estranho.”

“Se ele é tão estranho assim, por que faz tanta questão de ser amigo dele?”

Dongwoo abandonou a pergunta no ar, e ela logo se espatifou no chão. Tão simples e ao mesmo tempo tão densa. Nem eu sabia o motivo pelo qual queria ser amigo daquele garoto. Acredito que talvez exista uma cota de pessoas que devem passar por nossa vida e, quem sabe, esse garoto está na minha cota. Não sei… Sinceramente, não sei.

“Não sei. Eu só queria conversar…”

“Você tem a mim.”

“Claro que eu tenho. Mas… Não sei explicar, Dongwoo-yah… Eu só queria que fossemos amigos. Ele não me parece ser uma má pessoa. Eu só sinto que talvez exista algo que eu possa fazer por ele. Sabe, quando temos uma missão, ou algo parecido?”

“Isso é tudo muito bonito e romântico, Gyu, mas já pensou que talvez ele tenha seus motivos pra ser assim?”

“Claro que pensei. É isso que penso toda vez que vejo aquele olhar triste. Nós temos dezesseis anos, Dongwoonie, dezesseis! Não temos tempo pra ficarmos tristes, ou deixar de nos comunicar com o mundo por algo que nos aconteceu. Sei lá, to supondo que tenha acontecido algo.”

“E você já parou pra pensar que talvez ele não queira viver como um adolescente de dezesseis anos? É normal pra algumas pessoas a dificuldade em interagir. Você não sabe se ele tem alguma religião que não permita contato. Ele veio de um colégio adventista.”

“Se ele tivesse mesmo, ele teria ido pra outro colégio adventista. Tem vários deles por aí.”

“Você não sabe os motivos dele ter mudado, por que ele é assim, se vai ser desse jeito pra sempre.Só seja paciente, uma hora ele vai ter que abrir a boca.” Dongwoo acariciou meu braço, um sorriso terno em seus lábios. “Como planeja apresentar esse trabalho, se vocês não conseguem se juntar pra fazer?”

“Como é que você vai fazer isso? Não quer trabalhar com a Hyunhee.”

“Ela chega em alguns minutos… Disse que precisava tratar de ‘assuntos de mulher’, e já vinha.”

“Por que você não aceita sair com ela, Dongwoonie? Ela é tão bonita e simpática…”

“Você não entenderia, Gyu. Mas um dia eu te conto.” Deu de ombros e se voltou ao computador.

“Qual o sentido de não entender meu melhor amigo? Me conta!”

Ele riu, me ignorando completamente. Dongwoo escondia algo de mim, algo que parecia ser forte demais para que ele tivesse coragem de dizer. Meu instinto dizia que isso tinha a ver com o fato de que ele fugia tanto das garotas que se aproximavam dele, ou por andar demais com Hoya.

E por falar em Hoya, ele ao menos era feliz. Estava sempre sorrindo, por onde quer que fosse. Sua personalidade era exatamente como a de Dongwoo. Ambos eram positivos, sorridentes, animados. Estavam sempre por aí, falando sobre musica e dança, jogando ou fazendo algo típico de adolescentes. Se ao menos eu fosse mais simpático e ligado a isso, poderia me livrar desses pensamentos.

Mas eu não conseguia me livrar deles. Não conseguia esquecer Nam Woohyun.

Maldito Nam Woohyun.

Fiz cópias do livro, anotações e pesquisei algumas coisas na internet, para certificar-me de que estava tudo de acordo com o possível gosto de Woohyun. Levei mais tempo que o planejado na biblioteca e, quando eram quase quatro da tarde, decidi que já era hora de ir para casa e descansar um pouco.

Eu não morava longe da escola, tampouco perto a ponto de ir a pé, mas o dia estava tão agradável, que decidi ir andando para casa. Ao longo do caminho, sentia-me leve. Pela primeira vez naquela semana, não pensava em minha mais nova obsessão – talvez o trabalho e estudo de mais cedo me esvaziassem um pouco de tantos pensamentos.

Mas, quando faltavam apenas algumas quadras para minha casa, notei que passaria pelo lugar onde havia visto Woohyun na noite anterior. Baguncei os fios ruivos, um pouco irritado, e ajeitei a mochila nas costas, apertando o passo para que eu não parecesse um curioso que persegue as pessoas.

Um garoto estava parado diante do muro em que Woohyun se apoiara ontem à noite. Ele observava a campainha, como se seus olhos fossem cair se os desviasse dali. Não havia qualquer sinal de Woohyun, ou qualquer outra pessoa ali, mas o garoto continuava a encarar a campainha.

Diminuí meus passos, analisando o perfil daquele rapaz. Era da minha altura, talvez da mesma idade que eu, ou um pouco mais novo, quem sabe. Tinha pele clara, cabelos castanhos e bem penteados, e um sorriso tristonho estampado nos lábios. Seus olhos eram como os de Woohyun: vazios, distantes. Por um minuto, pensei nos motivos que o levaram ali, todos sem qualquer fundamento.

Quando já não tinha como evitar, passei por ele e o fitei, seu olhar vindo de encontro ao meu. Era os mesmos olhos, a mesma expressão. Tão próximos, que senti meu estomago embrulhar ao contato, mesmo que não fosse físico. Adiantei meus passos e, quando já estava longe, olhei para trás.O garoto caminhava na direção oposta a mim, tão lentamente quanto eu caminhava.

Não sabia exatamente o que fazer. Se já não havia qualquer abertura para assuntos pessoais com meu colega de classe, de nada me adiantaria lhe dizer que havia visto alguém na frente de sua casa. E eu nem sabia se aquela era de fato sua casa. Eu não sabia de nada.

Estava cansado de tanto pensar. Cansado de criar teorias ridículas que não faziam o menor sentido. Assim que cheguei a minha casa, tranquei-me no banheiro e deixei que o chuveiro tirasse de mim todo o cansaço e tensão. Minha mãe, por sorte, não trabalhara naquele dia. Ao ver que eu estava inquieto, me preparou um pouco de chá e biscoitos, que ela mesma assara mais cedo.

Ela me conhecia, sabia que não estava em meu estado normal, mas também sabia que não adiantaria de nada perguntar o que acontecia. Diferente do que eu esperava, ela sentou-se ao meu lado, no sofá, e deitou-me em seu colo, acariciando meus fios de cabelo. Mal sabia ela que era tudo aquilo que eu precisava.

Eu não queria falar. Não desejava abrir minha boca, e Dongwoo havia entendido. Estávamos a quinze minutos do intervalo, e a aula de matemática parecia interminável. Meu amigo então teve a brilhante ideia de me enviar uma mensagem de texto, e logo senti o celular vibrar sobre a mesa, pegando-o rapidamente para que o professor não notasse.

“O que foi? Tá de TPM?kkkkkkk”

O fitei irritado, e ele riu como se confirmasse o que havia perguntado. Dongwoo conseguia me fazer sentir menos nervoso mesmo quando me deixava estressado com suas brincadeiras e deboches. Mostrei o dedo para ele, o que o fez rir ainda mais, e peguei o celular para respondê-lo, no mesmo tom sarcástico.

“Acho que estou grávido… Isso me estressa, poxa, ta atrasado.”

Dongwoo pegou seu celular, o encarou confuso, e gargalhou sonoramente, tão espalhafatoso que deixou o aparelho cair no chão. A sala de aula em peso voltou sua atenção a ele – alguns rindo mesmo sem saber o motivo, outros o julgando –, e o professor nos encarou zangado, como se pressentisse que eu era o causador de todo aquele barulho. Quando ia nos repreender, o sinal soou e Dongwoo me puxou pelo braço, correndo para fora da sala.

“Você é louco?” Exclamei, batendo na cabeça de Dongwoo, e ele me empurrou, indo para o pátio.

“É você quem está de TPM, meu caro… Não eu. Quem mandou responder com algo tão idiota?” Riu e sentou-se em um dos bancos, apoiando as costas na mesa.

“Você que fez uma pergunta idiota, eu tinha que me defender!”

“Como você é bobo, Kim Sunggyu… Cai em todas as que eu armo pra você! Agora é sério.” Dongwoo me encarou, indicando que eu me sentasse ao seu lado. “Por que essa cara? Eu sei que você anda meio estressado com tudo, mas não é normal te ver assim.”

“Não consegui dormir essa noite.” Dei de ombros, tentando fugir dos olhos dele.

“E qual foi o motivo?”

“Eu vi um cara parado na frente da casa do Woohyun ontem…” Disse o nome de meu colega tão baixo, que se Dongwoo não estivesse perto, não ouviria.

“Era a casa dele mesmo?” Mal esperou que eu terminasse, e me interrompeu, deixando-me ainda mais irritado.

“Eu não sei! Deixa eu contar e não me interrompa!”

“Ok!”

“Você interrompeu de novo!” Dongwoo imitou minha expressão, mexendo as mãos como se elas fossem bocas. Ele era um completo idiota. “Tinha um cara lá ontem. Ele tinha o mesmo olhar do Woohyun… Achei estranho.”

“E você não dormiu por isso?” Me deu um tapa na testa, como se esse fosse um motivo irrelevante demais para minha falta de sono. Mal sabia ele o que eu tinha visto.

“Fiquei com uma impressão estranha, não sei explicar… Ele parecia tão sério, parado feito um guarda britânico na frente da casa do garoto. Será que esse cara tem algo a ver com o humor dele?” Abandonei a pergunta como se Dongwoo tivesse a resposta. Ele me encarou, confuso, e logo deu de ombros.

“Não faço a mínima ideia.”

Dongwoo inclinou-se para frente, os olhos perdidos entre os alunos que interagiam nas mesas ao nosso redor. Eu apenas o observava. Tentava me infiltrar em seus pensamentos, descobrir o que o deixava curioso. Quem sabe fossem os mesmos motivos que os meus. De repente, ele me encarou, ainda naquela posição. Eu sabia que viria outra repreensão. Dongwoo parecia preocupado.

“Você não acha que já foi longe demais com essa sua curiosidade, Gyu-ah?”

“Como assim?”

“Como assim o que?” Empertigou-se, aproximando seu rosto do meu. Já não me lembrava da última vez em que havia visto meu amigo tão sério.“Você não está agindo de forma coerente. Não está sabendo discernir que tipo de coisa está acontecendo contigo. Isso me irrita e me preocupa… Olha só, você até faz teorias sobre as pessoas que passam ou deixam de passar pela casa do cara. Você não dorme porque fica pensando nisso. Já não é algo normal, Gyunie. Esse não é o meu amigo, eu quero saber o que esse tal de Nam Woohyun fez com você!”

Desviei meu olhar. Não era capaz de encarar Dongwoo, quando ele estava coberto de razão. De nada me adiantaria pensar sobre isso, eu já havia queimado todos os meus neurônios com aquele bendito garoto, de nada valeria me estressar com meu amigo por causa dele. Não quando eu não tinha como me defender de todas as verdades que acabara de ouvir. Respirei fundo e encostei minhas costas na mesa, exausto de tanto pensar em coisas inúteis.

“Olha ali o seu carma…” Ele sibilou, e me virei para olhar. Woohyun caminhava devagar entre os alunos, os olhos presos aos pés, como se ensinasse-os como deveria andar. Desviava vez ou outra das pessoas, trazia consigo um pacote de fritas, sentou-se a alguns bancos de nós, e se pôs a observar o movimento no pátio. Estava tão só, não apenas fisicamente, era como se sua aura se sentisse solitária. Eu o via, e podia sentir o vazio e solidão que emanavam dele. Minha vontade era chamá-lo para que se unisse a nós, que conversasse conosco e esquecesse o que lhe afligia. “Você queria que ele estivesse aqui, não é?” Dongwoo sibilou, seus olhos passeando entre eu e o garoto.

Não respondi. Eu não precisava dizer algo, Dongwoo me conhecia tão bem que já sabia o que se passava por minha mente. Parecia saber até demais. Ele agia como se conhecesse minha confusão melhor que eu mesmo. Como se tivesse meu diagnóstico em mãos, mas ainda não estava preparado para me dizer. Suas reações me assustavam, não podia negar.

Então, voltei minha atenção ao garoto do outro lado da mesa. Ele parecia menos abatido. Menos vazio, quem sabe. Meus olhos se perderam em sua direção, tentando vislumbrar ao menos um pouco do que acontecia consigo. O mirava tão intensamente, que ele notou. Woohyun me fitou, de baixo para cima, lentamente. Uma visão tão perturbadora, que beirava a dor. Eu me sentia entorpecido por aquelas íris, uma sensação enlouquecedora e ao mesmo tempo calmante. Eu me sentia entre a tormenta e a bonança, num misto de sensações que acabava de conhecer. Por que ele me causava aquelas reações?

Quando nossos olhos por fim se encontraram, num vislumbre indescritível, Nam Woohyun desviou os seus, encarando o pacote em suas mãos. Talvez fosse presunção da minha parte achar que ele ficara nervoso, mas a forma como ele movia suas mãos o entregava, não havia como negar. Eu não podia desviar os meus de si, no entanto. Era a primeira vez que eu via algo naqueles olhos. Eu estava perto, bem perto de ver sua alma.

Uma opinião sobre “Rotten Apple

  1. Cascas de maçãs… Eu já te falei que maçã não é minha fruta preferida? Eu só como se alguém descascar pra mim??? E aqui estou eu sonhando que alguém repare nisso lool

    Gyu, para, isso não é mais curiosidade, quando você muda por uma pessoa… E meu menino, você esta dando conta desse fato né?

    Amei a metáfora da maçã, porque a vida é bem isso… A gente deseja o mais bonito, se encanta por aquilo que a gente não pode ter, se deslumbra…

    Por favor, não desista meu menino, o Woohyun precisa de você… Esse olhar de desolação não é normal… Ele não esta nenhum pouco feliz, apenas não desista… porque penso que perderá a melhor parte da sua vida, na verdade a metade da sua vida… como você mesmo disse é sua missão…

    Quem é o garoto que apareceu? mistérios e mais mistérios… E esse sexto sentido do gyu… gente ele sente e pressente tudo D=

    Woohyun, seu lindo, vem aqui com a noona, eu te amo meu bebê ;_;

    PS: tenho vontade de ser o Gyu e pegar o namu e não deixar que nada de mal lhe aconteça…

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD