Rotten Apple

Cinquenta e Oito

Enquanto as rodas de borracha faziam um barulho estranho pelo piso frio do hospital, Woohyun cantarolava uma canção qualquer. Ele não podia ver meu sorriso, mas era melhor assim. Enquanto eu empurrava sua cadeira pelos corredores afora ele não podia ver meu semblante preocupado e tenso. Mas eu não conseguia resistir à sua voz melodiosa. Tampouco sabia que Woohyun cantava tão bem.

Ele era capaz de espantar de minha memória a lembrança desagradável de Myungsoo. De suas palavras a respeito dele. De todo o ciúme que havia sentido horas atrás. Eu sabia que havia sido rude com ele, que ele apenas queria ajudar, mas só percebi isso quando já estava no leito de Woohyun, ajudando-o a ir para a cadeira de rodas.

“Pra onde está me levando, Gyu?” Ele perguntou curioso, mexendo no acesso preso à veia de seu braço.

“É segredo!” Abaixei-me até alcançar seu ouvido e sussurrei. Seu pescoço se arrepiou e eu sorri. “E se continuar cutucando esse treco no seu braço, vou te deixar aqui sozinho.”

“Não fala assim… Eu gosto de sentir a agulha.” Ele deu de ombros, soltando o braço. “É uma sensação estranha, mas eu gosto.”

“Nam Woohyun, já disse pra parar com isso!” Insisti, acelerando o passo.

“O que é que vai fazer, Kim Sunggyu?” Ele ergueu os olhos, tentando me fitar.

“Vou te levar pra um lugar só nosso.” Sussurrei outra vez e pude ver o sorriso se formar em seus lábios.

Ficamos em silêncio até chegarmos ao elevador. Ele observou o painel e eu me senti obrigado a cobrir seus olhos ao apertar o botão que nos levaria até o terraço. Alguns andares e lá estávamos. Ele observou os corredores com um tom de curiosidade em suas íris, e eu me sentia satisfeito. Woohyun não se atreveu a perguntar, apenas relaxou os ombros, os cotovelos apoiados aos braços da cadeira, e fechou os olhos, encostando a cabeça em minha barriga. Eu não sabia se olhava para sua expressão, ou se prestava atenção no caminho que deveria tomar.

Quando me aproximei de uma das saídas de emergência e o sol cálido de final de outono tocou a pele de Woohyun, seu sorriso fora capaz de ofuscar o astro rei. Ele segurou minha mão e a trouxe para perto de seu rosto. Beijou-a levemente, roçando a ponta do nariz frio sobre minha pele. Eu não podia evitar acariciá-lo. Observar seu sorriso de olhos cerrados, como se pusesse toda sua força em tal ato. Woohyun ainda não havia visto nada do que eu fizera, mas já demonstrava sua gratidão.

“Gyu…” Ele sussurrou, puxando-me para sua frente. “Sabe há quanto tempo não sinto esse calor?”

Eu meneei em afirmação e me ajoelhei diante dele. Woohyun segurou minha outra mão e beijou a ponta de meus dedos, mesmo sabendo que não deveria fazer aquilo. Envolvi as suas suavemente, tentando ao máximo não machucá-lo. Estavam tão frágeis e pequenas que mais pareciam mãos de uma criança.

A luz do sol corava as maçãs pálidas do rosto dele, tiravam aquele aspecto semivivo que havia se apoderado dele há um mês, mais ou menos. Os médicos e enfermeiras não recomendavam a exposição direta ao sol, mas aqueles cinco minutos não lhe faria mal. Ele precisava sentir o vento em seu rosto, mesmo que frio. O sol – e eu – o aqueceríamos de qualquer forma.

“Se minha mãe descobrir que eu vim até aqui, ela me mata!”

“Shh.” Toquei seus lábios, calando-o. “Ela não vai descobrir. Esse é o nosso lugar secreto!”

“Como descobriu aqui?”

“Os métodos de busca não são românticos, então eu só direi que achei esse lugar perfeito pra nós dois. Agora vem aqui…”

Ofereci minhas mãos a ele e o ajudei a se levantar da cadeira. Ainda havia nele certa força, então não foi difícil que desse dois passos em minha direção. O abracei pela cintura e o levei até uma cadeira de plástico que havia encontrado perdida naquele terraço, e o ajudei a se sentar.

“Namu… Você sabe que logo vai sair daqui e só volta pras sessões de quimio, não é?”

“Sim.” Ele buscou meus olhos assim que me ajoelhei diante de si novamente. Seus olhos atentos aos meus, vez ou outra inspecionando meus lábios à espera do que eu tinha a dizer.

“Eu sei que no começo vai ser um pouco difícil, que você se sente fraco e tudo o mais… Mas não se esqueça que eu estou aqui, ok? Se você não puder andar, eu vou ser suas pernas. Se não quiser ir até a escola, eu vou te ajudar no que você precisar. Se você quiser voltar ao seu ritmo, eu vou estar lá pra te apoiar. Eu realmente não vou te deixar sozinho em momento algum.”

“Gyu…”

“Tem algo que eu preciso te contar.”

“O quê?” Seus olhos se abriram vivos, curiosos.

“Na verdade eu não queria contar. Mas eu não seria sincero contigo e me sentiria mal por isso.” Ele franziu o cenho e senti meu coração apertar. Começava a me arrepender de haver tocado no assunto, mas não conseguia imaginar nada que pudesse inverter tal situação. Mas Woohyun já estava imerso em mim, suas mãos presas às minhas como se me impedisse de fugir, mesmo que fosse apenas de seus olhos.

“Vamos, Gyu, diga!”

“Eu… Eu gostaria de saber sobre o que você sente.”

“Isso é algo que você queria contar? Não parece.”

“Só preciso saber disso antes. Quero saber se algo pode mudar antes que eu comece a falar.”

“Gyu Gee Gee, seu bobo! O que pode mudar entre nós dois?” Ele sorriu, trazendo minhas mãos ao seu rosto novamente.

“Não sei…” Disse inseguro e ele inclinou-se em minha direção. Woohyun selou meus lábios com os seus brevemente, deixando seu rosto colado contra o meu por alguns segundos. Sentia sua respiração fraca tocar meus lábios, me instigando a continuar o beijo. Mas eu conhecia seus limites e sabia que, naquele momento, era ele quem decidiria se continuá-lo ou não. Woohyun sugou o ar com força, como se estivesse prestes a mergulhar, e me beijou novamente. Beijava passionalmente, como quando nos beijamos em meu quarto, meses atrás.

Eu sentia seus dentes arranharem de leve minha boca, a sucção leve e trêmula contra minha língua, a forma como ele se agarrava aos meus cabelos como se não desejasse que eu me afastasse nunca. E eu, em troca, o beijava com tanta paixão quanto cabia em mim. Tentava não machucá-lo, mas quando Woohyun estava entre meus lábios eu não podia evitar que meu desejo por ele transbordasse.

Woohyun separou o beijo quando notei que já não conseguia respirar direito. Seus lábios avermelhados eram tão lindos que eu tentava a todo custo evitar olhá-los e sucumbir à vontade de beijá-lo mais uma vez.

“Quer saber como eu me sinto, Gyu?” Ele jogou meus cabelos para trás e me puxou. Eu estava ajoelhado diante dele, meus braços ao redor de seu corpo, as mãos presas à cadeira. Woohyun segurava meu rosto como se não desejasse que meus olhos se desviassem dele. Como eu poderia evitar tal olhar? “Eu me sinto fraco. Às vezes tenho vontade de tossir, mas me dá medo, porque parece que tudo dentro de mim vai se soltar e escapar pela minha boca. Me sinto mal depois da quimioterapia, me dá uma sensação estranha de que novamente tudo dentro de mim vai sair pra fora… Quando chega a noite e minha mãe vem pra ficar comigo, eu me sinto estranho. Ela se senta na poltrona ao lado da minha cama e me faz carinho nos cabelos. Fica olhando, como se contasse fio por fio, como se estivesse contabilizando pra ver quantos eu perco por dia. Por sorte ainda não caiu nenhum…” Ele se moveu um pouco, como se a cadeira fosse incômoda para seu corpo frágil. “Ela me faz carinho. Me trás um pouco da comida que eu gosto, pois diz que a comida do hospital é péssima. Fica o tempo todo ao meu lado, mas não diz nada. Nem sequer uma palavra. Já meu pai não fica muito aqui. Ele vem, pergunta como estou e vai embora. Boohyun hyung sempre conversa comigo. Trás baralho e nós jogamos. Ele diz como estão as coisas, fala que a noiva está brava porque tiveram que adiar o casamento e que quer voltar pros Estados Unidos.”

“Eu não sabia… Achei que ela apoiava o hyung.”

“Às vezes acho que ela quer que eu morra logo, assim ela pode se casar com ele mais depressa. Enfim. Quando nenhum deles está aqui, eu penso.”

“Sobre o que você pensa?” Os olhos de Woohyun pareciam tão sonhadores que eu não pude evitar o sorriso.

“Penso que eu devo realmente ser um fardo. Olha só pra mim, Sunggyu… Estou fraco, debilitado. Mal consigo me levantar da cama e só estou no começo do tratamento. Minha família mudou a rotina por minha causa. Você mudou sua rotina por minha causa. E o que eu faço? Só fico aqui, preso nesse hospital como se fosse um prisioneiro à espera da execução. Me sinto vazio, Gyu. Por mais que eu tente, não consigo ver muitas esperanças. Aí eu vejo você. O que eu fiz pra merecer você, Kim Sunggyu?”

“Você não precisa…”

“Eu não acredito, sinceramente, que algum dia eu possa retribuir a você tudo o que fez e ainda faz por mim. Isso me faz sentir fraco.”

“Se você se sentir fraco, eu estou aqui pra te fazer sentir forte, Nam Woohyun.” Inspirei fundo, tentando ao máximo não ceder a ele. Woohyun, por sua vez, chorava emudecido.

“Talvez eu mereça esse câncer. Essas dores, esse mal estar… Eu só não mereço as pessoas que insistem em mim. Não mereço você, Sunggyu.”

“Quantas vezes vou precisar repetir a mesma coisa?” Ressonei magoado, desviando meu olhar para o casaco azul claro com pequenos logos do hospital.

“Até que eu me convença de que eu realmente mereça você…”

Woohyun aproximou seu rosto do meu novamente. Podia sentir a fronte fria colada à minha, os dedos presos à minha nuca, como se não desejasse jamais se apartar de mim.

E chorava.

Chorava como uma criança perdida da mão da mãe em um lugar repleto de desconhecidos. Chorava desconsolado, inseguro, temeroso do que estava por vir, e eu não podia julgá-lo. Não conhecia sua dor, não sabia o que o afligia tanto, a ponto de fazê-lo tremer sobre aquela cadeira.

Talvez Woohyun só precisasse chorar. Como quando eu desabei ao saber sobre seu diagnostico. Como Boohyun hyung ao contá-lo. Todos nós precisávamos pôr para fora tudo o que de certa forma nos fazia mal. Por mais que me partisse o coração vê-lo desabar daquela maneira, me sentia útil por ser aquele que secava suas lágrimas. Mesmo que as secasse com meu cabelo, minha pele contra a sua.

“Eu tenho tanto medo, Gyu. Medo de que esse pesadelo não se acabe nunca.”

“Quando você sentir medo, Namu… eu vou estar lá pra te proteger do que quer que seja.”

“Ainda não consigo entender por que você faz tudo isso por mim…”

“Porque eu amo você.”

Woohyun derramou seu sorriso terno sobre minhas palavras. Havia ali aquelas covinhas perdidas sobre a pele fina e rosto magro, ainda assim lindo. Ele acariciou meu rosto com cuidado, mas diferente dele, não havia lágrimas a serem limpas. Eu me sentia forte. Como se houvesse transposto uma montanha sem ao menos sair do lugar.

Conforme o tempo passava, me sentia maior. Minhas mãos conseguiam contornar aquela macieira, curá-la aos poucos, devolver vitalidade à minha maçã preciosa.

Quando Woohyun tocou meus lábios com os seus, o gosto agridoce da lágrima que o havia molhado segundos atrás, eu senti que fazia a coisa certa. Que estava pronto para enfrentar o que quer que fosse por ele.

E por um segundo, me esqueci que, na verdade, estava ali para falar sobre Myungsoo.

Quando entrei no carro e vi Dongwoo na direção, me espantei. Meu melhor amigo gargalhou como se minha expressão fosse alguma piada ou coisa do tipo. Coloquei o cinto e ele deu a partida, dirigindo como se fosse um expert ao volante.

“O que deu na sua mãe pra ela te deixar pegar o carro?” Perguntei espantado e ele bateu em meu ombro.

“To fazendo aula pra tirar minha carta, Gyu Gee Gee. Disse a ela que precisava praticar, que você estava aqui e sua mãe não podia te buscar. Aí ela só jogou a chave na minha cara e mandou eu sumir da frente dela.”

“Sua mãe é adorável!”

“Mais adorável que a mãe do Namu…” Ele deu de ombros, gargalhando. “Se bem que qualquer pessoa é mais adorável que aquela mulher.”

“Hum.” Ignorei. Pelo que Woohyun dissera hoje, eu havia entendido que ele gosta de sua mãe. Que sente falta do carinho dela. Talvez tudo o que ela precisava era da compreensão e atenção dos outros. Ou talvez não.

Dongwoo dirigiu em silêncio por alguns minutos. Mas meu amigo tinha uma língua grande demais para caber em sua boca, então decidiu que era melhor colocar algo na minha boca, nem que fossem suas próprias palavras.

“Como o Namu ta?” Ele perguntou, prestando mais atenção à rua que ao que dizia.

“Acho que ele está mais vulnerável. Não sei…”

“E por que diz isso?”

“Ele disse algumas coisas que eu nunca imaginei que diria. Justo hoje que eu ia falar sobre o que falei com Myungsoo.” Abri um pouco o vidro e senti o ar frio bater em meu rosto. “Mas acho que foi melhor assim…”

“O que foi melhor assim?”

“Não ter contado sobre o Myungsoo. Sabe, Dongwoo, eu sinto que o que tenho com o Namu é algo bem especial. Mas ainda me sinto inseguro. Não sei como será o dia de amanhã. Se ele ainda vai estar forte, ou vai ter algum tipo de recaída. Não sei como vai ser quando ele vir o Myungsoo e se isso vai influenciar no que ele sente por mim…”

“Espera… Como assim quando ele vir o Myungsoo? Por que ta falando isso?”

“Myungsoo disse que vai doar a medula pro Namu. Não gostei dessa ideia, mas ao menos ele pode salvar a vida dele. Me dói a alma saber que aquele cara pode mudar o futuro do Woohyun, mas se ele permitir que meu amor continue vivo, eu não posso recusar. Não posso, Dongwoo…”

“Mas o que o ‘não ter contado sobre o Myungsoo’ significa?”

“Eu ia contar pra ele. Ia falar que o vi hoje, que ele quer ajudar. Que ele pediu que eu cuidasse dele. Mas Woohyun não está preparado. Eu não estou preparado pra admitir isso.”

“Vai com calma, Gyu Gee Gee. Você está muito afobado e ta colocando o carro na frente dos bois de novo. Se lembra quando eu te disse sobre esperar rolar um clima?

“Você tem razão… Mas eu não quero pensar sobre isso agora.”

“Tudo bem…” Dongwoo dobrou a esquina de sua casa e passou por ela, indo em direção à pizzaria que ficava há algumas quadras dali. “Ah, Hyunhee e Hoya estão com Sungjong na pizzaria pra comemorar a aprovação dele na nossa escola. Ele vai ser transferido na segunda feira!”

“Finalmente uma notícia feliz!”

Ele sorriu e me deixou em silêncio. Eu realmente precisava de um minuto de silêncio para organizar toda a tempestade de pensamentos que me invadira depois de um dia como aquele.

Quem sabe um pouco de riso e pizza pudessem acalmar meu coração.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD