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Quarenta e Seis

 

Algumas coisas em nossas vidas são percebidas por nós assim que acontecem. Como quando eu e Dongwoo, aos onze anos, jogávamos futebol em meu quintal e ele chutou a bola tão forte que quebrou a vidraça da vizinha. Nós ouvimos os estilhaços e logo a senhora enfiou a cabeça pela fresta que a bola causou, nos xingando de palavrões que nem nós, que éramos meninos pré-adolescentes, sabíamos. Ou da vez em que eu entrei na cozinha e descobri que minha mãe assava um bolo para minha festa surpresa.

Há também as coisas que demoramos algum tempo para descobrir. Como quando descobri, depois de seis meses comendo o mesmo bombom, que mamãe tinha uma bomboniere escondida em seu quarto, na qual depositava chocolates uma vez por semana. Ou quando eu passei meses sentindo ciúme de Hoya, e só depois de muito tempo, o vi aos beijos com Dongwoo.

Ou pior ainda, quando descobri que Woohyun havia desmaiado e sido hospitalizado.

Durante esse meio tempo, eu segui minha vida como sempre o fazia. Saí da escola, o acompanhei até o portão, conversamos sobre coisas que me fizeram pensar que eu discutia com ele e fui para casa. Naquele mesmo dia, conversei com Hyunhee por telefone pelo que acredito ter sido uma hora. Só desligamos porque Sungjong havia chegado a sua casa – ele ia todos os dias à casa de Hyunhee – e então eu liguei para Dongwoo. Meu melhor amigo também desligou porque o namorado acabara de chegar, e me senti sozinho.

Não me lembro por que não enviei mensagem de texto a Woohyun. Eu apenas me deixei observar aquela estrela que coloquei na cabeceira de minha cama. Mesmo que o quarto estivesse iluminado e ela não brilhasse, eu não podia desviar meus olhos dela.

Eu continuava angustiado. Uma dor estranha no meu peito que eu não sabia precisar sua causa. Tudo estava aparentemente bem entre nós dois, Dongwoo e Hoya também estavam bem entre si e não havia muitos conflitos entre eles. Hyunhee estava animada porque ela e Sungjong tiveram a brilhante ideia de criar um blog sobre moda e essas coisas que só garotas – e Sungjong – gostam. O que poderia me deixar tão aflito?

Enquanto eu abria o portão de minha casa, Woohyun estava estirado no caminho de pedras que dava para a entrada da sua. Quando abri a porta de meu quarto e me joguei no colchão, com o celular em mãos a fim de ligar para Hyunhee, a mãe dele corria desesperada em sua direção, ajoelhava-se diante dele e tentava acordá-lo.

Quando eu desliguei o telefone e liguei para Dongwoo, Nam Woohyun entrava no hospital pela entrada de emergência, os médicos o cercando e medindo sua pulsação, fazendo os preparativos para a bateria de exames a qual ele se submetera, e até o momento, não havia resultado.

Eu fitava sua estrela. Ele recebia soro em sua veia da mão. Eu me remexia sobre a cama. As enfermeiras corriam até ele, porque sua veia estava muito fraca e logo estourava, causando uma pequena hemorragia no local. Eu pensava nele. Ele retomava a consciência por alguns segundos, e voltava a perdê-la.

Eu sentia meu coração suprimir, doer, arrebentar. Eu não sabia como ele estava.

No outro dia eu, ainda inocente, entrava na sala de aula e meus olhos procuravam por ele em sua carteira. Havia apenas Jang Dongwoo sentado ao meu lado, com o mesmo olhar preocupado. Conversamos brevemente e ele perguntou de Woohyun, mas eu não soube responder.

Nam Woohyun havia faltado e nós nem ao menos sabíamos o motivo. Levantamos a hipótese de ele haver ficado em casa por estar doente outra vez – nós sempre levantávamos tal hipótese, tendo em consideração o fato de que Woohyun sempre adoecia – mas ela era tão mórbida e ruim, que tentamos pensar positivo e acreditar que ele havia acordado atrasado demais para se importar em ir à escola.

Hoya perguntou dele quando o vimos, no intervalo. A resposta que saíra de minha boca era a mesma que saíra da de Dongwoo, a diferença era o fato de a minha voz sair cambaleante, incerta, preocupada. Dongwoo tentou me acalmar, mas quando vi Hoya me fitar daquela forma confusa, eu me lembrei de que ele havia sangrado no domingo e também durante o intervalo da segunda feira.

Enviei uma mensagem a Woohyun ‘você está bem? estamos preocupados’. Não houve resposta. Ao final da última aula, a noona da secretaria entrou na sala de aula e conversou com a professora. A expressão não era muito boa, e logo algo dentro de mim fora acionado, e eu pensei em Woohyun.

Pensei sobre os últimos acontecimentos que nos envolveram, pensei sobre o beijo, sobre nós dois dormindo no mesmo colchão, sob o mesmo teto, pensei no sangue em sua pera, a hemorragia que descia profusa por seu rosto. Pensei sobre cada uma das palavras que trocamos enquanto caminhávamos para casa. Pensei em Woohyun com tamanha força, que o via diante de meus orbes cobertos por minhas pálpebras que se fechavam com obstinação.

Ao fim da aula, eu e Dongwoo detivemos a professora antes que ela saísse da sala, e perguntamos o que a moça da secretaria dissera que a deixara tão atordoada. Tudo o que pudemos ouvir fora: “Conto a vocês, porque sei que são amigos dele. Nam Woohyun foi internado ontem no hospital Asan. Ele desmaiou assim que chegou da escola, então seus pais se apressaram a levá-lo.”

Se Dongwoo não houvesse segurado meu braço, eu despencaria. A notícia caíra como quando se lança um prato em uma parede. Era como se meu coração fosse feito de porcelana e a professora o houvesse agarrado e lançado ao chão. Eu podia ouvir os cacos se partindo, espalhando, envenenando meu ser. No entanto, meu rosto não tinha qualquer expressão.

Minhas pernas bambeavam e Dongwoo me ajudou a me sentar em uma cadeira. Meu cenho estava franzido, encrespado. Meus lábios presos em uma posição que, depois de alguns segundos, estavam formigando. Eu não conseguia raciocinar, e não havia nada que pudesse entrar em meu cérebro e ser compreendido.

Dongwoo, que ainda raciocinava um pouco, foi até o bebedouro sem muito alarde e me trouxe um copo de água. Bateu em minhas costas quando engasguei com o primeiro gole, e tomou o resto. Não sabia o que dizer então só se agachou diante de mim e esperou até que eu desviasse meus olhos até os dele. Eu ainda não havia entendido o que a professora acabara de dizer.

“Namu está internado?” Perguntei como se Dongwoo soubesse. Ele segurou minha mão e suspirou.

“Foi o que a professora disse.”

“O que aconteceu?” insisti, piscando repetidas vezes, como se tentasse enfiar o juízo em minha mente através de meus olhos.

“Não sei.”

“Preciso ver ele, Dongwoo.” Minha voz ecoou pela sala, e me levantei.

“Como?”

“Não sei… eu só… preciso vê-lo.” Assim que ouvi minha voz, minhas lágrimas começaram a desabar de meus olhos. Eu não as sentia. O aperto em meu peito era maior que qualquer outra coisa. “Ele sangrou, Dongwoo. Ele caiu quando eu atravessava a rua, se ele realmente desmaiou quando chegou em casa. Dongwoo…” Respirei fundo, mantendo o ar em meu peito. Doía tanto que eu não podia suportar. “Eu senti algo estranho. Quis voltar, mas não pude. Por que eu não voltei, Dongwoo?”

“Calma, Gyu. Você está transtornado com a notícia. Ainda não sabemos o que houve.”

“Quero vê-lo. O Asan é longe daqui?” A voz mal saía de minha boca, e eu ainda não havia percebido que estava em estado de choque.

“Precisamos pegar um ônibus e o metrô.”

Eu não conseguia dizer nada além daquela pergunta, e Dongwoo entendia. Encontramos Hoya nos corredores do colégio e logo nós seguimos em direção à parada de ônibus. Da escola até a estação de Dongsu, levamos quinze minutos. De Dongsu até Songpa-gu, levamos mais vinte e cinco minutos, e eu já podia raciocinar melhor.

Eu só conseguia pensar nele. Pensar em como havia chegado naquela situação. Eu não fazia ideia do que poderia ter levado Woohyun a ser internado, tampouco me agradava imaginá-lo em uma cama de hospital. Teriam furado sua veia da maneira correta? Ele estaria em um lugar confortável? Nam Woohyun e seu misterioso estado eram tudo o que se passava em minha mente.

Tivemos de andar duas quadras até o hospital, e Hoya tentava ao máximo me reanimar. Eu apenas meneava ao que ele falava, e Dongwoo decidiu que seria ele a perguntar por Woohyun assim que chegássemos lá.

O hospital era imenso, assim como os outros prédios que o cercavam e faziam parte do complexo ao qual ele pertencia. Dongwoo nos levou até a entrada, como se já o conhecesse, e nós nos dirigimos até a recepção. Hoya insistiu que eu me sentasse em uma das poltronas de espera com ele, mas eu estava relutante. Queria poder invadir aquele lugar e buscar por Woohyun, mas algo dentro de mim dizia que aquele era o maior hospital da Coreia e seria difícil encontrá-lo. Senti as mãos de Hoya em meus ombros, e elas me acalmavam. Dongwoo, por sua vez, meneava sua cabeça diante do balcão.

“O que será que ela está dizendo a ele?” Perguntei angustiado e Hoya me fitou.

“Não sei… Vamos esperar ele voltar e perguntamos.”

“Me sinto estranho.” Ressonei, e ele tocou meu joelho, tentando me acalmar.

“Você está preocupado, hyung. Isso é normal. Todos nós estamos, mas precisamos manter a calma.”

“Eu acho que, se eu tivesse voltado quando tive aquele pressentimento, as coisas poderiam ser diferentes.”

“Ele teria desmaiado do mesmo jeito, hyung.”

“Mas eu não teria demorado tanto pra saber que ele está aqui… Sabe-se lá como.”

Hoya abaixou os olhos, talvez por não saber o que dizer. Eu notava que ele e Dongwoo estavam tão aflitos quanto eu, mas eles tentavam a todo custo não demonstrar suas emoções. Eles pareciam me poupar, me apoiar para que eu não caísse. Enquanto meu melhor amigo andava em nossa direção, com o semblante caído e evitando me olhar, eu senti o coração ainda mais contraído. Era como se algo de muito ruim me esperasse, como se eu fosse apagado do mundo aos poucos. O que teria acontecido com Woohyun? Que males haveriam tocado minha maçã preciosa?

“O que houve, Dongwoo?” Perguntei aflito, e ele se sentou ao meu lado.

“Bem…” Ele limpou a garganta e tentou falar. Me parecia ainda mais aflito que eu, e minhas mãos estremeceram. “Namu foi internado em estado grave porque perdeu muito sangue. A recepcionista disse que não pode dar muita informação, e ele também não pode receber visitas porque está em observação na sala de emergências.”

“Como ela não pode dar muita informação? Nós somos amigos dele!” Me exaltei e Hoya puxou meu braço.

“Calma hyung, espere o Dongwoo terminar.”

“Ele teve uma hemorragia muito forte, por isso precisa de transfusão de sangue. Ela disse que, como o sangue dele é do tipo B, é mais difícil encontrar doadores.”

“Eu sou AB.” Hoya disse tão baixo que eu fui o único a escutá-lo.

“Eu sou A.” Disse, me lembrando de que Dongwoo também o era.

“Precisamos encontrar pessoas com sangue B ou O negativo pra doar sangue.” Dongwoo pontuou, olhando para as próprias veias.

“Quando vou poder visitá-lo?” Perguntei, e Dongwoo ergueu seus olhos por alguns instantes.

“Não sei.”

“Como não sabe? Você falou com a moça da recepção, não falou?”

“Falei… Mas não sabemos quando ele vai sair da emergência. Precisamos esperar um pouco, Sunggyu.”

“Não consigo esperar.”

As lágrimas caíam quentes e pesadas por meu rosto. Eu não sabia o que dizer, tampouco tinha forças para me levantar dali e perguntar o que quer que fosse. Era como se toda minha energia houvesse sido subtraída, consumida, dispersada. Meus olhos fitaram então o corredor de onde saíam enfermeiras e pacientes que cambaleavam de um lado ao outro, levando consigo uma espécie de pedestal com bolsas de soro penduradas em suas hastes.

Onde estaria Woohyun? Onde estava aquele que fazia meu coração perder seu compasso, que me fazia transbordar em lágrimas, ansioso por saber como era seu estado de saúde? Eu queria correr até ele, abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem. Queria poder acalmá-lo, trocar de corpo com ele e sofrer em seu lugar o que quer que fosse. Eu suportaria qualquer coisa para vê-lo bem. Passaria por qualquer circunstancia, se isso significasse que ele não sentiria mais dor. Que ele não sangrasse mais.

Dongwoo, talvez não sabendo o que fazer, me abraçou. Sussurrava “tudo vai ficar bem” em meu ouvido, mesmo que não soubéssemos se essa afirmativa era verdadeira. Senti a mão de Hoya entre meus cabelos, e quanto mais eles tentavam me acalmar, mais as lágrimas despencavam desesperadas de meus olhos.

O que era aquela dor que me invadia? O que era aquela mão que cobria meu pescoço e não me permitia respirar direito? Sentia como se minha alma desfalecesse aos poucos, e tudo o que me restava eram as lágrimas profusas e densas.

Meus melhores amigos esperaram que eu cessasse meu choro, e me ajudaram a sair da recepção. As pessoas nos fitavam como se fossemos estranhos, mas eu não me importava com o julgamento alheio. Quando passamos pela porta de entrada do hospital, levantei meus olhos até o pequeno lance de escadas, e notei que uma mulher subia rapidamente, trazendo consigo uma bolsa que parecia pesada demais para seus ombros.

Colei meus olhos em sua silhueta, quando notei traços tão conhecidos meus. O mesmo nariz pontudo e pronunciado, os mesmos lábios espessos e avermelhados. A expressão se diferenciava um pouco, tendo em consideração que ela tinha o semblante fechado, irritadiço. Era a mesma mulher que eu vira outras vezes diante da casa de Woohyun. Sua mãe, que me fitava de volta, e eu não gostava da forma como seus olhos relampeavam em minha direção.

Ela certamente havia me reconhecido, e meu coração temia que ela impedisse que eu o visitasse.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD