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Vinte e Dois

Depois de toda uma semana confusa e cansativa, aquela sexta feira parecia ser um pouco melhor. Ela nos dava uma trégua, nos deixava respirar. Tudo parecia normal, desde o momento em que me pus a esperar Woohyun na esquina de sua casa, até o final do treino.

Woohyun estava com uma aparência melhor. As olheiras haviam desaparecido e ele dissera que era por haver dormido bem depois de algum tempo. Falou sobre as vitaminas que tomou para que a gripe fosse embora, sobre sua mãe estar mais maleável consigo – este detalhe só me fora segredado, por ele saber que eu a vira repreendendo-o – sobre os filmes que assistiu durante a tarde, debaixo dos cobertores, acompanhado de chocolate quente.

Falou sobre tudo, menos sobre o que aconteceu na segunda-feira. Eu começava a desistir de qualquer possibilidade de um novo beijo, ou de que, quando estivéssemos sozinhos, ele se sentisse melhor e me contasse como se sentia. Tinha vontade de pedir a Dongwoo que conversasse com ele, mas seria ridículo um homem como eu se submeter a isso. Eu era o interessado, eu quem deveria falar sobre isso com ele.

Ainda assim, não tinha coragem.

Depois do treino, fomos almoçar juntos – por conta da professora – para comemorarmos o sucesso daquele mês de muito esforço e dedicação. Hoonye, pela primeira vez, parecia mais animado. Woohyun se sentou ao lado dele e deixou que sua alegria contagiante dominasse o garoto. Dongwoo ria dele, contava piadas bobas e Hoonye ficava vermelho, tentando conter as gargalhadas. Por mais que aquele momento fosse simples, me sentia feliz por estar com eles no que parecia ser nossa última saída juntos – e nem havíamos saído pela primeira vez.

Quando terminamos, eu e Woohyun seguimos nosso caminho em direção à nossas casas, e ele parecia leve. O humor dele era capaz de transformar o meu tão facilmente, que eu mesmo não conseguia acreditar.

“Você quer que eu faça outro caminho?” Perguntei a ele, ainda temia causar algum problema.

“Não precisa, Gyu.” Ele sorriu e tocou meu braço. Mal pude conter os espasmos que me invadiam. “Minha mãe foi até o conselho tutelar, hoje é dia de sessão com a psicóloga. Meu pai tá no escritório, então ele não vai chegar antes do anoitecer.”

“Ah, fico mais aliviado assim.” Sorri para ele, e, timidamente, ele retribuiu o sorriso. Ah, como eu desejava provar daqueles lábios mais uma vez.

“Se eles não estivessem fora, eu não teria ido almoçar com vocês. Minha mãe fica louca se descobre.”

“Mas, por que ela é tão extremista contigo, Namu? Eu não entendo.” Ele desviou o olhar e suspirou, chutando o ar enquanto subíamos na calçada que levava à sua casa.

“São tantas coisas, Gyu. Eu queria ter coragem de te contar, de verdade. Mas elas ainda machucam um pouco. Digamos que eu perdi toda a confiança dos meus pais, e quando a confiança é destruída, não existe mais nada.” Woohyun parecia sério, mas sua voz soava decepcionada, triste. Uma sensação estranha me invadiu e eu não sabia explicar o que era. Eu realmente não sabia o que fazer ou dizer. “Meu hyung é a única pessoa que tenho, mas ele está tão longe. Não adianta nada ainda ter o carinho dele.”

“Você tem um hyung?”

“Sim. Boohyun hyung é tudo o que me restou. Mas ele está nos Estados Unidos, então tudo o que posso fazer é me isolar, já que nem meu email minha mãe me deixa usar.”

“Mas agora você tem a nós.” Eu disse confiante, e lhe sorri. Woohyun devolveu o gesto com os olhos. Sua expressão ainda era tristonha, mas havia uma faísca naquele olhar, eu podia vê-la. Chegamos ao seu portão, e ele o abriu, virando-se para mim com um sorriso cheio de dentes. Um sorriso lindo.

“Obrigado, Sunggyunie. Eu sou muito grato por isso.” Meu coração estava prestes a se extinguir, eu bem sabia. “Minha mãe chega em duas horas. Quer entrar?”

“Tem certeza? Não vou causar problemas?” Respondi admirado, ansioso por que ele insistisse. Nunca quis tanto algo em toda minha vida – eu queria, claro, mas precisava enfatizar.

“Se fosse causar, conhecendo meus pais, eu não te convidaria. Vem, é rapidinho.” Ele abriu mais o portão e eu olhei ao redor, me certificando de que ninguém me veria entrar. Quando passei por ele, seu perfume me atingiu em cheio, deixando-me desnorteado.

A casa de Woohyun era grande e bonita. Podia se ver de longe que ele pertencia a uma família nobre, tradicional. Na parede principal da sala de estar havia um quadro pintado à mão, onde sua mãe e seu pai estavam sentados em duas poltronas de espaldares altos; atrás da mulher, estava um rapaz que se parecia com Woohyun, mas de feições mais rudes e masculinas. No braço da poltrona do pai, entre ele e a mãe, Woohyun se sentava. Ele devia ter seus dez anos naquela imagem, era apenas um garotinho – ainda assim, um lindo garoto.

No aparador, várias fotos de família, retratos de viagens, imagens de Woohyun e seu irmão em várias etapas de suas vidas. Havia também uma pequena estante, repleta de medalhas e troféus, e Woohyun percebeu meu olhar. “Os de cima são do meu irmão. Ele era quem mais ganhava competições de natação no colégio. Os de baixo são meus.”

“Mas tem muito mais seus.” Me admirei. A quantidade de medalhas de Woohyun era bem maior.

“Boohyun hyung é excelente. Eu só ganhei essa quantidade, porque meu pai me enfiou em todas as competições possíveis. Ele queria que eu fosse como meu irmão.”

“E como é seu irmão?” Perguntei instintivamente.

“Atleta. Está fora por isso. Porque compete profissionalmente.”

“Mas você…” Antes que eu pudesse concluir, ele me puxou pela mão e me levou corredor afora, em direção das escadas.

Nas paredes havia mais quadros, e estes imagino ser de Woohyun quando era um bebê. A mobília da parte superior da casa era ainda mais bonita, requintada. Entramos no quarto de Woohyun e ele fechou a porta, mesmo que estivéssemos sozinhos. Ele deixou a mochila em um canto e se jogou em sua cama.

Seu quarto se parecia com o meu – alguns pôsteres na parede, um armário grande e visivelmente bagunçado, e eu pude ver, já que algumas portas estavam abertas, a escrivaninha que, no seu caso, não tinha computador, e uma TV grande com vídeo game. Sim, ele não havia mentido sobre sua mãe não lhe tirar o game. Eu me sentei na cadeira e o fitei, ele tinha o olhar fixo no teto. Haviam estrelas fluorescentes coladas ali.

“Minha mãe colocou comigo, quando compramos essa casa. Eu devia ter cinco anos. Nunca quis tirar elas de lá.” Ele disse, sorrindo ao ver sua pequena constelação.

“Elas são legais.”

“Coisa de meninas. Meu irmão sempre disse isso.” Ele deu de ombros, parecia não se importar.

“Qual a diferença de idade de vocês?”

“Oito anos. Ele sempre foi mais homem que eu. Eu ainda sou um garoto, ele tem uma noiva e logo iremos para lá, celebrar seu casamento.”

“Isso não faz de você menos homem.” Eu disse sem pensar, e ele me fitou. Eu não sabia o que dizer depois, ele só desviou seu olhar, como se eu não houvesse dito nada.

“E você, tem irmãos?”

“Eu teria uma noona, se ela tivesse sobrevivido.” Disse calmamente, e ele voltou a me fitar.

“O que houve? Sente falta dela? Sinto muito.”

“Na verdade eu não cheguei a conhecê-la. Minha mãe guarda uma foto dela, mas nunca me deixou ver. Ela era um bebezinho, meus pais dizem que ela teve uma pneumonia e não suportou. Eu fui superprotegido depois disso. Às vezes sonho com ela, é estranho, mas sinto como se ela fosse uma espécie de anjo da guarda.”

Ele se sentou na cama e sorriu. Seus olhos me diziam o que ele não sabia dizer, e me senti reconfortado. Woohyun se levantou e abriu a única porta do armário que estava completamente fechada, e me mostrando sua coleção de livros. Conversamos sobre eles, alguns eu já havia lido e isso nos rendeu ainda mais assunto. Woohyun parecia tão confortável com minha presença em sua casa, que eu não me sentia ansioso.

Fiquei ali apenas por vinte minutos. Os vinte minutos mais preciosos da minha vida. Ali, eu conheci mais de Woohyun. Eu vi sua intimidade, sua família, o lugar onde ele passava a maior parte de seu tempo. Ele, no entanto, parecia vigiar cada um de meus passos, como se escondesse algo de mim. Eu não me preocupava com esses pormenores, apenas desejava aproveitar mais de meu tempo com ele.

Mas nem tudo era perfeito. O receio de ser pego de surpresa por sua mãe me atemorizava e eu decidi que era melhor ir para casa. Descemos as escadas e Woohyun me levou até o portão. Ele caminhava à minha frente, e eu me enchia de seu perfume. Observava os fios negros roçarem sua nuca, a forma como o a camisa do uniforme o deixava mais sexy quando para fora da calça.

Ele abriu o portão e, naquele momento, sentia a necessidade de beijá-lo outra vez. Não havia qualquer palavra capaz de sair de minha boca, tudo o que eu podia fazer era mordiscar o lábio inferior e segurar em mim a vontade de dizer a ele tudo o que se passava em minha cabeça. Lhe perguntaria o que achou daquele beijo, se havia alguma chance, mesmo que remota, daquilo voltar a acontecer. Mas minha mente tentava me manter são, em pé diante do garoto que roubara cada um de meus sentidos.

Woohyun também me fitava, mas eu não sabia dizer ao certo o que seus olhos me diziam. Não estavam vazios, tampouco revelavam alguma coisa. Eles me atraíam, me chamavam, me diziam coisas que eu não sabia entender. Mas ele voltou a si – ao menos eu assim cria – e acenou, me tirando de meu transe.

“Até segunda, Gyu-ah.”

“Até.”

Ele sorriu e entrou. O acompanhei até que ele entrasse na casa, e segui meu caminho em direção à minha. Eu pensava nele. No sorriso, nas conversas, na forma como ele me olhava. Woohyun certamente não me chamaria até sua casa se não tivesse gostado do beijo. Mas também não dava abertura para que eu me aproximasse mais.

Eu, no entanto, não tinha pressa. Esperaria o momento certo.

Os garotos cercavam Dongwoo e, tudo o que eu podia ouvir, eram os gritos e as palavras de admiração. Para a competição, meu melhor amigo que já havia tingido seu cabelo de vermelho, amarelo e laranja, aparecera com os fios num tom azul escuro, quase índigo. Eu tinha que confessar que, de todas as cores que ele já usara, aquela era a que lhe caía melhor.

Woohyun fez com que os garotos se calassem em seguida, e distribuiu as roupas de mergulho para todos que competiriam, independente da classe. Hoya pegou a de Dongwoo e o puxou pelo braço, dizendo que ia ajudá-lo a se trocar – ele estava bem diferente com as roupas que havia escolhido para a apresentação que faria, certamente ganharia de todos os outros colégios.

A competição teria sua abertura em uma hora. Vestimos as roupas de banho, e moletons para nos cobrirmos. Como éramos da casa, nos ocupamos de preparar tudo e nos arrumarmos para dar lugar aos alunos visitantes. Alguns deles usaram a biblioteca e a sala de professores como concentração, mas havia cinco colégios e não tínhamos salas o suficiente para todos. Quando terminamos tudo, fomos para o refeitório, a fim de terminarmos nossos preparativos.

Woohyun parecia animado. Andava de lá para cá, juntando os times que as outras salas formaram, dando dicas de como deveriam respirar, do que fazer em caso de câimbras, de como manter a calma e a concentração. Parecia um verdadeiro treinador, um atleta, como imagino que seu irmão deveria ser, e me senti orgulhoso por ele. Por quantas coisas aquele garoto havia passado? Ele ainda permanecia de pé, mesmo que aparentemente seus ossos estivessem todos esmagados.

Eu me deixei observá-lo, e fingi que meu campo de visão tomava o refeitório inteiro. Woohyun vacilava quando os outros não estavam olhando. Parava em algum lugar, se apoiava em uma das mesas, parecia ter dificuldade ao respirar. Mais que depressa, fui até ele e o vi empertigar-se, como se fingisse que tudo estivesse bem. Claramente não estava.

“Tá se sentindo bem, Namu?” Toquei seu ombro e ele se assustou, sentando-se em um dos bancos.

“Sim, to sim. Por quê?”

“Eu não sei, você não parece muito bem.”

“To ótimo, Sunggyu.” Ele se levantou e moveu os braços, como se estivesse se aquecendo. Estava fingindo, claro. “Você sabe quais os colégios que vão competir com a gente?”

“Eles nunca revelam, não sei por quê. E bem, nós vamos saber daqui a pouco, então relaxa.”

“Ok.”

Woohyun se sentou novamente, e eu notei que ele tentava ao máximo manter sua respiração em um ritmo aceitável. Ela parecia querer abandonar seu corpo de uma vez, eu percebia pelos espasmos que ele tinha, vez ou outra. Pus-me à sua frente e o examinei, tentando pensar em algo que pudesse fazê-lo melhorar.

“Quer água?”

“Não.”

“Quer um suco?” Insisti, e ele moveu a cabeça em negação. “Quer que eu busque algo pra comer? Um energético? Um calmante?” Ele negou todas as ofertas e segurou minhas mãos, balançando-as no ar. Eu me sentia tão bobo em ter minhas mãos envolvidas pelas de Woohyun, que era como se fosse uma garotinha.

Eu pensava que não poderia ser pior, até que olhei para ele, e seus olhos me invadiram de volta. Aquelas poucas semanas de treinamento me bastaram para reconhecer aquele brilho em seus orbes e, por mais que eu quisesse fugir, estava perdido. Woohyun sorriu, puxou minhas mãos e me fez ajoelhar diante dele. Ainda balançava minhas mãos, mas parecia certificar-se de que eu não desviaria meu olhar dele. Uniu os lábios, inflou as bochechas e arregalou os olhos, fazendo seu aegyo. Eu provavelmente soltei algum grunhido ininteligível enquanto era atacado por sua fofura, mas quem se importava? Aquela era a reação de todos quando sofriam seu ataque.

Soltei uma de minhas mãos e bati em sua perna, fazendo-o parar. Woohyun gargalhou e bateu em minha mão, e eu provavelmente continuaria batendo nele só para ter uma desculpa para tocá-lo. Ele ainda ria, quando começou a analisar o refeitório, olhando ao redor como se buscasse alguém. Vez ou outra me encarava, mas eu dizia tantas coisas bobas enquanto ele respondia monossílabos como se fosse um bebê, que nem eu mesmo prestaria atenção.

Passamos algum tempo assim, eu perdido, o fitando como se ele fosse a única pessoa da face da Terra, e Woohyun falando aleatoriedades, rindo e observando o refeitório. Nossa conversa parecia haver ajudado em seu estado, ele relaxava aos poucos e voltava a respirar novamente. Enquanto eu estava ali, ajoelhado diante dele, com minhas mãos entre as suas e nossos olhos se encontrando vez ou outra, me sentia em casa. Ele se tornava meu lar. Ou seria eu quem fizera do meu coração, um lar para ele?

Eu não precisava de muito quando estava ao seu lado. Não precisava de beijos caudalosos ou abraços apaixonados, precisava apenas daquele sorriso.

Mas, de repente, aquele sorriso se apagou. Woohyun, cujos olhos fitavam todo o lugar, se detivera em um ponto. Eles brilhavam tristes, abandonando toda a alegria que os afogava minutos antes. Seus lábios se entreabriram, e eu pude notar o queixo vacilar. Suas mãos estremeceram entre as minhas, e eu tentava entender o que o deixava assim.

Até que desviei meu olhar para onde ele fitava.

Entre os alunos de uma escola cujo emblema não podia identificar, estavam eles. Sungyeol, Sungjong e Myungsoo sentados em uma das mesas. Os irmãos conversavam animadamente, enquanto Myungsoo se concentrava em algo. Fitei Woohyun uma vez mais, e ele observava as próprias mãos, como se tentasse buscar força através delas. Me levantei para ver melhor, e meu coração parou por um segundo, como se houvesse sido envenenado. Quando voltei meu olhar àquela mesa, respirei fundo para não desabar.

Myungsoo em sua mesa se concentrava como se tentasse cumprir uma tarefa quase impossível. Descascar uma maçã.

Que tal mandar um alô pra tia Suz? xD